segunda-feira, 27 de junho de 2011

19 O PROGRESSO, A BICICLETA - A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

O PROGRESSO, A BICICLETA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 48 a 49

Voltar a Ipaumirim? Fiquei indeciso. Guardava a promessa de Chico Olívio, “de qualquer jeito você não fica desempregado”. Mas o velho sabia onde eu estava em Cajazeiras e já era do seu conhecimento o que tinha se passado com o Senhor de Piano. Ele me encontraria na hora que quisesse. Voltar a Ipaumirim poderia significar-lhe uma cobrança e, portanto, uma indelicadeza. Também, seria pouco recomendável, para mim, ficar em Cajazeiras sem fazer nada.
- Quem quer ir ao Melão comigo?
Convidei, no meio da família, um grupo de umas dez pessoas que tinham se demorado mais na festa de fim de ano em Cajazeiras saí com elas, montado na mais nova invenção que nos chegava àqueles interiores: uma bicicleta, meio de transporte mais funcional e menos incômodo que o lombo do burro as economias que amealhei no emprego da mercearia me permitiram essa esnobação de rapaz novo.
- Mas quem diria, hein? Não é que esse filho de Dosanjo já tem uma tal de bilicicleta!
E, para demonstrar ainda mais a força dos novos temos, me meti estrada a fora com os companheiros de viagem. Como eles iam a pé, entendi de ajudá-los, alternando os passageiros que tornava comigo na garupa e no quadro da bicicleta. Apanhava dois e avançava meia légua. Voltava, apanhava mais dois e os deixava uma légua adiante; tornava a voltar e promovia os retardatários à linha de frente da maratona.
- Uma vantagem esse bicho tem, Chico: É LIMPO, NÃO dá trabalho, não descome capim, a cobra não morde.
Nessa brincadeira, quase sem nos darmos conta, chegamos, todos, meus companheiros muito alegres e eu muito cansado, mas feliz pelo regresso ao Melão, ponto de partida e retomada do meu destino.



 

sábado, 11 de junho de 2011

18 OUTRA ESCOLA, O BALCÃO A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

OUTRA ESCOLA, O BALCÃO
Do livro Do Miolo do Sertão, pags. 44 a 48.
Em 1941, na última semana do mês de junho, encontrava-me eu com o meu cunhado Ciço Moreira na cidade de Ipaumirim, acertando as contas da venda do nosso algodão com o senhor Maximiamo Lustosa, dono de um armazém de secos e molhados, comprador de peles e gêneros da região, conhecido mais pela alcunha de Senhor De Piano.
- Quê que o senhor é de Seu Piano, comerciante em Cajazeiras?
- Sou filho dele. Você conhece meu pai?
- Conheço, sim, desde quando fui morar em Cajazeiras, há bem dez anos. Na seca de 32, Seu Piano tinha um fornecimento na Rua de Santo Antonio, bem perto da casa de meus avós.
- E você já morou em Cajazeiras?
- Já, sim, senhor, duas vezes.
- Me admira como você voltou a morar e se acostumar de novo no mato, rapaz.
Expliquei-lhe que não tinha outra saída.
- E você teve escola por lá?
- Sim, e antes também, no Melão.
- Quer dizer, então, que sabe ler, escrever e conhece as quatros operações de conta?
- Conheço, sem embaraço.
- Me diga uma coisa, você não tem vontade de trabalhar no comércio?
- Tenho, sim.
- Quer trabalhar aqui nesta mercearia comigo?
- Se o senhor me aceitar, eu quero.
- Quando você pode vir?
- Se o senhor quiser, eu posso ficar logo aqui. Meu cunhado volta sozinho e avisa a minha mãe pra ela me mandar as minhas coisas depois, por um portador.
- Não, não tem tanta pressa assim. Você pode voltar pra casa e acertar com a sua mãe tudo direitinho, depois volta aqui.
Foi quando me lembrei de lhe dizer que, se precisasse de informação a meu respeito, eu poderia lhe indicar alguns nomes em Cajazeiras.
- Você não é filho do falecido Mestre Matias?
- Sou, sim, senhor.
- Para mim já basta. O seu pai teve muitos negócios com o meu pai, todos eles tirados dentro do mais elevado padrão de honestidade. Eu não precisaria exigir nenhuma outra melhor qualificação de um empregado meu.
Baixei os olhos com humildade. Era aquele um dos momentos incisivos no traço de minha vida. E, sem mais, ali presente, diante de mim que a agasalhava muito imperfeita ou quase apagada na meória, a silhueta do meu pai, me segurando pela mão, avalizando-me, só com o seu nome, os primeiros passos no pórtico de um mundo desconhecido:
- Procede Sempre como um homem de bem, meu filho.
O convite e o crédito de confiança do Senhor de Piano me deixaram tão fora de mim, que nem procurei saber em que condições salariais haveria de trabalhar com ele. No começo do mês seguinte, exatamente a 5 de julho, eu era o mais novo balconista de Ipaumirim, remunerado a 50 mil réis por mês, com direito à bóia na casa do patrão.
O entusiasmo do Senhor De Piano parecia correr de porfia com o meu. Logo na primeira semana, ele viajou a Campina Grande para reabastecer o empório. Eu fiquei tomando conta de todos os negócios.
As coisas progrediam. Com pouco tempo era ampliado o comércio com a instalação de um bar-lanchonete, que passou à minha exclusiva responsabilidade.
Mas o Diabo, que não tolera por muito tempo ver trabalhar em paz os filhos de Deus, Meteu-se a encher de sobras os dias felizes do comerciante de Ipaumirim e seu caixeiro noviço. Foi por artes do Capiroto – ninguém duvide! – que inexplicavelmente, naquele mesmo ano começou a surgir uma série de desavenças entre o meu patrão e a esposa. O desentendimento desgostou-o a tal ponto, que, antes do final do ano, ele resolveu desfazer-se de todos os seus negócios em Ipaumirim e mudar-se para Cajazeiras.
O bar em que eu trabalhava foi passado a Chico Olívio, um dos mais conhecidos negociantes de estiva da praça. Mas o comprador pediu-me que eu permanecesse a seu serviço por um mês, até que o seu sobrinho aprendesse o necessário para levar à frente, sozinho, as vendas. Ali estava, ali fiquei. Ao cabo de quinze dias, o velho me chamou:
- Se eu conhecesse você antes, não teria comprado esse negócio para o meu sobrinho. Mas, se até o mês de abril do próximo ano, você não estiver empregado de novo, considere-se já trabalhando comigo. Se houver inverno, eu abro um armazém de estivas para você tomar de conta em Cajazeiras. Se for seco, eu boto um fornecimento. O fato é que você não vai ficar prejudicado e de todo jeito trabalha comigo.
Estávamos no final de 1941. fiquei com Seu Chico Olívio até 31 de dezembro. Tendo ido passar o Dia de Ano com os meus familiares em Cajazeiras, por lá me demorei no aguardo das novidades.
Desafortunado Senhor De Piano! Novamente ele me encontra, novamente vamos trabalhar juntos. Agora a mercearia é ali nos Remédios, um arruado de quatro ou cinco taperas que nem pode ainda ser chamado de bairro.
Quando estávamos em franco desenvolvimento, começa outra vez o desentendimento do casal.
- Preciso de sua ajuda – ele me diz.
- De que se trata?
- Minha mulher vai botar veneno na minha comida. Vou fazer o meu prato com você de agora por diante.
Percebi logo que alguma coisa funcionava mal na cabeça do meu patrão. Cedo ele passou também ao mais completo descontrole financeiro. O que eu deveria fazer? Apesar do apelo comovente do seu próprio pai para que eu permanecesse ajudando o malogrado comerciante, minha decisão era inabalável:
- Vou-m’embora. Isso aqui não pode ter futuro.
O Senhor De Piano se desesperou. Pouco tempo depois a mercearia acabou-se.



 

sábado, 4 de junho de 2011

17 TERRA, E NUVENS, ESPUMA NAS MÃOS- A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

TERRA, E NUVENS, ESPUMA NAS MÃOS
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 43 a 44
O silêncio dói nos ouvidos. O silêncio, afora esses grilos escondidos, de cantiga repetida no baixio. As chuvas botaram o mundo em verde. O ar treme à altura das retinas.
E esse chocalho, no lengo-tengo monótono... Venho seguindo a novilha no silêncio. Eu e ela. Quase a vi nascer, mas assisti às carícias da mãe, língua longa no pêlo liso, focinho erguendo a bezerrinha mal se agüentando nos pés. Hoje, não. Hoje tai ela bonitona, formosa nas ancas, uma fêmea e tanto. “Mimosa” – fui eu que lhe dei o nome. Mimosa, vou lhe dizer, viu? Você tá demais, tá sabendo? Diabo de touro desrespeitoso, pensa que não escuto o rancor noite a dentro, o chocalho denunciando no curral, eu perdendo o sono? E esse inchaço no balanço do monte de carne preta, convidando com uma almofada! O pingo de sangue coalhado na ponta dos pelos. Touro sem alma. Tentação. Eu sozinho. Mas essa vaca não me espera. Algo me cresce. Mimosa, você podia encostar mais na cerca, Mimosa. E enterrar um pouco mais os pés na areia. Areia fina, fofa, boa nos pés. Terra boa, esse Melão, um pecado. Fazendo covas na areia a gente se deita. E rola se espojando num lençol que chama. Depois, o banho no açude. A gente vai aprendendo. E praticando, praticando o que aprendeu.  Os bichos ensinam de graça a toda hora, os galos com pressa, os porcos no oitão, patos e perus, cabras em choro, bodejando sem decoro, bodes pedintes, e a satisfação violenta do touro, dono de tantas vacas, solene touro. A terra nascem os fios nas bananeiras, as pitombeiras florescem, as canafístulas e os pau-d’arcos se bordam em outro, as goiabeiras pegam carrego. Paganismo. A nuvem vem beber água no baixio. A minha vista escurece, nuvem nos meus olhos. Novilha ingrata. Cada vez se afasta. A nuvem bem baixando, estarei tonto? Subo à cerca, para pegar a nuvem com as mãos. Apoio-me nas estacas, faço força com os pés entre as fendas do varado. Lá embaixo, perto da cacimba, tem gente tomando na latada de folhas secas. Meu Deus, é uma mulher! A nuvem vem passando, é uma mulher! A nuvem vai passando, é uma mulher! É a vez que vejo uma mulher nua. A vaca foi-s’embora. A mulher é uma novilha de raça, da minha raça. Estou só. Eu e ela. Ela nem sabe de mim. Quero gritar. De medo? De prazer? De surpresa? De encantamento? O coração me vem pela boca em galope: se eu gritar, ele salta ao chão. No silêncio, o barulho da água se derramando no corpo da mulher. A espuma do sabão escorregando nas grotas do corpo. De novo o sol. O brilho do corpo ao sol. Os grilos no silêncio. Doem-me os ouvidos. Ânsia, aflição. E um prazer que vem de dentro, me entumescendo, crescendo, se desdobrando. Fecho os olhos. Abro os olhos. Esbugalho os olhos pra ver melhor. Oh, este instante não pode acabar. Esta é chave do paraíso, o parafuso da entrada no céu. A nuvem veio beber água, deixou a mulher. A mulher ficou nua no meio do mundo. Estou tonto. Mas esse instante que não deve acabar já acabou. A nuvem se foi. A mulher não me viu. Eu sozinho. Tenho uma nuvem na cabeça. E um punhado de espuma nas mãos.