sexta-feira, 22 de outubro de 2010

03 PARAISO PERDIDO , Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte


PARAISO PERDIDO
pag. 15 a 17
Com a perda repentina de meu pai, pouco é dizer que as promessas de prosperidade para a família Matias Rolim derruíram por completo. Tivemos que arrostar sacrifícios imprevistos por pelo menos uma década, numa insuperável corrida de obstáculos. Foi um duro aprendizado que, só à distância, posso contemplar como força acrisoladora do nosso caráter em formação.
Mas, como explicar que, do dia para a noite, tenhamos entrado a conviver com a penúria?
Antes de tudo, convém lembrar que, naqueles tempos, sobretudo no meio rural, não se falava em escrita contábil organizada. O tradicional borrador recebia as anotações das contas de credores e devedores. Esses, últimos, em especial, raramente deixavam comprovante escrito dos débitos assumidos, até mesmo porque, sendo amigos ou achegados ao círculo familiar, era normal se acertarem com Mestre Matias mediante  a contratação de serviços ou com a troca de cereais.
Além disso, meu pai com certeza sofrera pesados reveses nos seus dois últimos anos de vida. Em 1924, impressionado, como outros muitos, com a devastação da seca do 15, o velho Matias deu exagerada crença à uma “profecia” que chamava a atenção para a outra grande seca que estaria às portas. Chefe de numerosa família e responsável pela assistência a muita gente no Melão, ele se pôs a comprar e armazenar um estoque de farinha nunca visto. 1924, ao contrário do que se esperava, trouxe um inverno dos mais férteis. Foi total o prejuízo. A farinha mofou, aos bolões, no depósito.
Já em 1925, o caso do algodão. A expectativa pela nova safra elevou os preços do produto ao patamar de 20 mil réis a arroba, ainda na folha. Era neócio para arrebentar a praça, de fazer perder o juízo. Uns venderam o gado que tinham, outros penhoraram a propriedade por valores ridículos. A ordem era conseguir dinheiro e aplica-lo na compra de algodão. Mestre Matias, embora não tenha feito ousadias de comprometer-se irremediavelmente, não deve ter sido exceção a essa “febre do ouro branco”, dado o bom nome de que desfrutava. Seria impossível prever que o algodão deveria ser entregue a firmas com André Fernandes & Cia., em Mossoró, ou Higino Rolim, em Cajazeiras, a apenas cinco mil réis a arroba. À época da colheita, os preços oficiais caíram 300%.
Se meu pai continuasse vivo, teria certamente encontrado saída para a difícil situação a que as circunstâncias o levaram. Com o seu desaparecimento, porém, ocorreu que a corrida dos credores, no afã de receberem as suas contas, se deu na velocidade contrária à dos devedores em se quitarem com D. Dosanjo.
Minha mãe, além de não dominar maiores detalhes sobre o andamento dos negócios, estava nos últimos meses de gravidez. Acossada por tanta gente voraz, tratou de vender os próprios pertences para honrar a memória do marido. Restou-lhe a pequena propriedade do Melão, que ela teve de dividir com os dozes herdeiros de Matias Duarte Passos.. 








segunda-feira, 11 de outubro de 2010

02 O HOMEM DO MELÃO, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte


O HOMEM DO MELÃO
Pag. 12 a 14
“Morreu o homem do Melão”. A frase, repetida por muito tempo, traduzirá o desamparo com que ficaram, de repente, pelo menos quatro famílias irmãs e mais o círculo ampliado de parentes e amigos. Ao mesmo tempo, será a expressão de saudade e de reconhecimento ao velho Matias, o sertanejo forte que dava a impressão de personificar a cordialidade e a bonomia e que, no entanto, surpreendia, às vezes, por uma coragem incomum.
Corre o mês de março de 1923. O “povo” do Melão está retornando da festa de eleições no Umari, a sede do município. Voltam apavorados, falando baixinho que o bando de Sinhô Pereira, o temível cangaceiro do Pajeú, está atravessando da Paraíba para o Ceará e vai descer até o Melão. Alguns já viram os jagunços amoitados no Canto do Feijão. É um aviso. Sabe-se que eles esperam que as pessoas fujam e deixem casas e propriedades livres para o saque e a pilhagem. Com isso, poupam munição.
Os homens do Melão procuram o velho Matias e lhe aconselham que reúna a família e, como outros muitos, se refugie no mato.
- Não. A minha família vai ficar aqui comigo. Eu não acoito cangaceiro nem volante. Mas também não fiz mal a ninguém. Por isso, não tenho por que me afastar do meu lugar. Não os convido, também não impeço que venham. Vamos recebê-los todos juntos, desarmados, como fazemos com qualquer pessoa.
Os bandidos parecem que tomam conhecimento dessa disposição de meu pai. Lá pros lados de Cajazeirinha, sei deles se trancaram num quarto com uma mulher. Após o estupro, a pobre saiu correndo no rumo do Machado de Lavras, e nunca mais teve coragem de retornar ao seio da família. Romualdo Guedes quis se meter a besta com um dos cabras. Os outros chegaram lhe quebraram uma cabaça na cabeça. Vitalina, a velha, perdeu os anéis, os que carregava nos dedos pra começar, arrancados à força, deixando a carne viva. E, meu Deus!, o que foi isso que fizeram ao pobre Ernesto? No meio do terreiro para a mangofa geral, botaram-lhe uma sela e montaram nele, chicoteando-o como a um animal chucro.
São oito ou nove horas da manhã. O grupo desfila pela vereda em frente à casa do Mestre Matias. As mulheres rezam e tremem. Zé Matias, o único filho do primeiro casamento, volta do baixio, com uma espingarda de matar passarinho ao ombro, sem se dar conta do perigo. Do bando que passa, três cabras se afastam e tomam a direção de nossa casa. Vêm armados até os dentes, vestidos numa farda de mescla lustrosa.
Trocam as primeiras palavras com meu pai, que os recebe como impassível, sentado sobre a mesa no meio da sala, a filha Alodias, amparada entre as pernas. Para a surpresa e, mais, para o espanto geral, Mestre Matias reconhece no chefe dos três um homem chamado Ulisses, que, tempos atrás, como tropeiro, havia carregado algodão da bolandeira do Melão.
- Meu Mestre, vim aqui para lhe dar cobertura, enquanto o bando passa. Mexeu no senhor, mexeu em mim...
Mesmo com essas palavras, um dos malfeitores, ao ver o paiol de milho rente ao telhado, solta uma pilhéria:
- Ô vontade comer pipoca!
E o que tem isso de importante? – rebate-lhe Ulisses.
O cabra manobra o file. Ulisses responde com o mesmo gesto. O babra baixa a arma.
E aquele guarda-chuva no corredor?
- Está desmantelado – responde minha mãe.Ulisses repreende também o outro cangaceiro e recomenda a meu pai que guarde a corona pendurada numa trava de madeira no teto, pois ali está exposta à ambição dos cangaceiros. Outros jagunços poderão ainda passar e ele não estará presente.Zé Matias aparece. O almocreve dá-lhe um chapéu de massa. O café servido. Ao abrir o bornó para fumar, o cangaceiro presenteia meu pai com duas carteiras de cigarro e se queixa que está levando muito dinheiro em moeda. As moedas pesam. Pode o velho Matias trocar esse dinheiro por cédulas? Cinqüenta mil reis, serve. Meu pai dá-lhe vinte mil réis em cédulas e recusa as moedas em troca.
O cangaceiro agradece e, com os companheiros, apressa o passo para juntar-se ao bando que já passou.