domingo, 29 de abril de 2012

22 QUADRO AZUL DO SERTÃO, A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte


QUADRO AZUL DO SERTÃO
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 52 a 54
Quantas vezes já vi esta cena? Quantas vezes ela já se repetiu aos meus olhos? Neste mundo seco, onde tudo vale nada, a vida também vale bem pouco. Todos já estão acostumados. Por que se admirar?
O céu é azul como os olhos de um anjo. Nenhuma nuvem. Hoje é dia de selar o cavalo e sair a contratar a venda de algumas arrobas de algodão. O sol é a única generosidade que Deus se lembrou de fazer a este sertão. O vendo balança como uma toalha quente sobre o corpo. As últimas casas do arruado que se estreita em direção ao cemitério vão ficando para trás. Atravesso agora os porcos se enlameiam, amontoados em seu prazer suíno. Na calma da manhã, as rosas-sedas espoucam e soltam a paina ao ar.
Hoje seria bom para tudo, menos para me encontrar com esse cortejo, essa cantilena lacrimosa. Não posso abrir espaço. A custo me refreio a montaria e me encosto ao pé da barranca para deixar passar aquele grupo de cinco pessoas, cinco mulheres magras, de certo mais velhas do que os anos que têm, segurando as alças daquela caixa de sabão transformada em caixão de enterrar crianças. As tábuas estão revestidas com um trapo de seda azul pregado com alfinete. Por um momento, vejo na terra as cores do azul do céu.
–É um anjo - diz a mulher que deve ser a mãe, quase me pedindo desculpas.
- Deus resolveu tirar desse mundo.
- De que morreu?
- Barriga inchada.
É a miséria do Nordeste, mesma e sempre. A criança morreu botando vermes pela boca, comendo terra, enchendo-se de terra por dentro, defunto em vida, enterrado antes do tempo.
- Quanto anos?
- Quatro, o bichinho...
Quero perguntar o nome. Mas o que é um nome neste momento? É um menino moreno. O quadro é de uma crueldade tamanha que, ao contrário da gemente resignação das mulheres, eu me desmonto em revolta. Mas revoltar-me contra o quê? Contra quem? Esse povo já perdeu tudo. E é por isso que o quadro mais dói. A mãe me olha com olhos que interrogam, com medo e infinita resignação. Não. Não foi para este triste fim, para assim mostrar o filho numa encruzilhada de desventura, que um dia ela sentiu as dores do parto. Como toda mãe, ela sonhava ver no seu filho o redentor do mundo, que iria salvar a família, dando-lhe terra, pão, saúde, alegria de viver. Mas ela merece? Os olhos quase se perguntam: “Por que eu?” A resposta é a mesma de sempre: “Eu sou uma pecadora”.
- É um anjo. Deus o levou.
As mulheres entoam:
Bendito nosso bendito
Louvado seja
Sexta-feira da Paixão
Mãe que vê seu filho morto
Grande dor no coração.
Sem dizer uma palavra, tomo do caixão, acomodo-o na lua da sela e retorno o caminho de volta. As mulheres vão soluçando benditos e incelenças no passo moroso do cavalo. No cemitério há uma ala só para enterro de crianças. Ali, onde se acumulam covas rasas, mais um anjo desce à terra num caixão azul.