QUADRO
AZUL DO SERTÃO
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião
Moreira Duarte
pags. 52 a 54
Quantas
vezes já vi esta cena? Quantas vezes ela já se repetiu aos meus olhos? Neste
mundo seco, onde tudo vale nada, a vida também vale bem pouco. Todos já estão
acostumados. Por que se admirar?
O céu
é azul como os olhos de um anjo. Nenhuma nuvem. Hoje é dia de selar o cavalo e
sair a contratar a venda de algumas arrobas de algodão. O sol é a única
generosidade que Deus se lembrou de fazer a este sertão. O vendo balança como
uma toalha quente sobre o corpo. As últimas casas do arruado que se estreita em
direção ao cemitério vão ficando para trás. Atravesso agora os porcos se
enlameiam, amontoados em seu prazer suíno. Na calma da manhã, as rosas-sedas
espoucam e soltam a paina ao ar.
Hoje
seria bom para tudo, menos para me encontrar com esse cortejo, essa cantilena
lacrimosa. Não posso abrir espaço. A custo me refreio a montaria e me encosto
ao pé da barranca para deixar passar aquele grupo de cinco pessoas, cinco
mulheres magras, de certo mais velhas do que os anos que têm, segurando as
alças daquela caixa de sabão transformada em caixão de enterrar crianças. As
tábuas estão revestidas com um trapo de seda azul pregado com alfinete. Por um
momento, vejo na terra as cores do azul do céu.
–É um
anjo - diz a mulher que deve ser a mãe, quase me pedindo desculpas.
-
Deus resolveu tirar desse mundo.
- De
que morreu?
-
Barriga inchada.
É a
miséria do Nordeste, mesma e sempre. A criança morreu botando vermes pela boca,
comendo terra, enchendo-se de terra por dentro, defunto em vida, enterrado
antes do tempo.
-
Quanto anos?
-
Quatro, o bichinho...
Quero
perguntar o nome. Mas o que é um nome neste momento? É um menino moreno. O
quadro é de uma crueldade tamanha que, ao contrário da gemente resignação das
mulheres, eu me desmonto em revolta. Mas revoltar-me contra o quê? Contra quem?
Esse povo já perdeu tudo. E é por isso que o quadro mais dói. A mãe me olha com
olhos que interrogam, com medo e infinita resignação. Não. Não foi para este
triste fim, para assim mostrar o filho numa encruzilhada de desventura, que um
dia ela sentiu as dores do parto. Como toda mãe, ela sonhava ver no seu filho o
redentor do mundo, que iria salvar a família, dando-lhe terra, pão, saúde,
alegria de viver. Mas ela merece? Os olhos quase se perguntam: “Por que eu?” A
resposta é a mesma de sempre: “Eu sou uma pecadora”.
- É
um anjo. Deus o levou.
As
mulheres entoam:
Bendito
nosso bendito
Louvado
seja
Sexta-feira
da Paixão
Mãe
que vê seu filho morto
Grande
dor no coração.
Sem
dizer uma palavra, tomo do caixão, acomodo-o na lua da sela e retorno o caminho
de volta. As mulheres vão soluçando benditos e incelenças no passo moroso do
cavalo. No cemitério há uma ala só para enterro de crianças. Ali, onde se
acumulam covas rasas, mais um anjo desce à terra num caixão azul.