quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

13 CORPO FECHADO, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

CORPO FECHADO
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pag. 34 a 36

A figura de João Santos cresceu de tal forma em importância como um sujeito sanguinário, que logo surgiu em nosso meio, não se sabe de onde, o mito de que o facínora tinha uma hóstia cravada a punhal no próprio braço.
Corpo fechado?
Não seria preciso, se nos lembrarmos de que o diabo protege os seus.
Porém o sururu ocorrido no Olho d’Água, a 28 de setembro de 1934, parece deixar patente a invulnerabilidade desse personagem ao mesmo tempo monstruoso e misterioso.
Foi no casamento de Chico Bigi e Ambrosina, nossos parentes próximos. Tudo estava planejado para uma grande festa. O Melão em peso ali se faz presente. Os noivos são muito queridos e, afora isso, as chuvas abundantes garantiram uma safra que dá direitos a algumas extravagâncias. É tempo de vestir o liforme, calçar o botinão rangente, mostrar o vestido novo, o cavalo gordo, os arreios reluzentes. De Boqueirão de Piranhas, para onde se transferira logo após a morte de Zé Matias, veio Romeu Cruz, o animador do baile, com a orquestra que prometera trazer da Paraíba.
E como em casamento que se preza não pode faltar a bebida, os convidados podem se abastecer à vontade na bodega em frente. Romeu, o homem dos sete instrumentos, anda pra cá e pra lá, garantindo o bom andamento de tudo.
Mas, quem se atrevia a meter-se onde não era chamado. Para cúmulo da provocação, os Ribeiro tinham vindo também da Serra da Areia. Pior que isso, é clara a intenção deles, seguindo os passos de Romeu, calcando-lhe os mocotós. No meio desses meliantes, Pedro Alexandre e ninguém mais ninguém menos que João dos Santos.
É demais.
Romeu, tendo sido, na Justiça, a principal testemunha contra o assassino de Zé Matias, sabe de que se trata, mas não se intimida. Quando, agora na bodega, novamente se vê cercado de João dos Santos, desabafa:
- Com seiscentos diabos, se eu não trouxe cachorro comigo!
A resposta veio pronto:
Eu sou homem até debaixo d’água!
E, mais pronto ainda, o punhal cortando a fala. Romeu não arreia ali mesmo, porque Antonio Gonçalves pula num átimo e segura com as próprias mãos, agarrando a lâmina e quase decepando os dedos, a arma afiada em dois gumes, que desce no ponto de sangrar o amigo pelo pescoço.
Antes de ter tempo de responder ao agressor, uma “gravata” de Celso Ribeiro obriga Romeu a sacar o revólver para um tratamento à altura. À altura da cabeça, como convém, para o projétil não resvalar contra os poucos aliados. Celso se desagarra do inimigo, mas parece não se dar conta do que lhe aconteceu. Terá ele cuspido a bala do jeito que a engoliu. Cabra macho é Enéias Rolim, que dispara toda a carga contra João dos Santos a pouco mais de um metro de distância. Este já atirado no chão, daqui a pouco entrega os pontos. Mas já estamos em desvantagem. Agora quem é abatido é o compadre Enéias. Romeu está só. Ciço Moreira e João Branco, que poderiam ajudar, saíram com um dos convidados, bêbado como um gambá, levando-o pelos ombros até em casa. Aparecem capangas dos Ribeiro.
A refrega continua, agora travada a faca, a pauladas, aos murros, a pontapés, às dentadas. Alguns moradores do Melão também encostam e vão fechando as portas da bodega. A briga já vai para meia hora. Não há mais armas de fogo com munição disponível. Já é tempo de recolher os mortos e contar os feridos.
Um dos moradores de Enéias Rolim, vendo o patrão respirando penosamente pelos buracos das feridas, não se contém e puxa a faca ao tropeçar com João dos Santos:
- Deixar eu terminar de mandar também esse logo pro fundo dos infernos.
- Não perca seu tempo, esse aí já está morto – responde-lhe o patrão.
Graças a Deus, e surpreendentemente, Afora Antônio Gonçalves, o nosso único ferido é meu tio Enéias Rolim.
- Quem de vocês tem coragem de ir buscar o meu chapéu? – ele pergunta.
Ciço Moreira sai e lhe atende o pedido:
Esse não é o meu. Eu não levei nenhum tiro na cabeça.
O chapéu está furado de um canto a outro. Só então as pessoas percebem que aquela peça era de Celso Ribeiro, que escapou por um triz do primeiro disparo e de todos os demais, antes de sair correndo com o seu bando.
Dos agressores, o único ferido é João dos Santos. Ferido mortalmente, tão mortalmente que, ainda hoje, vivo, no Juazeiro do Norte, pode confirmar essa história em detalhes.



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