sábado, 26 de fevereiro de 2011

14 LAGARTAS DE CHIFRE, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

LAGARTAS DE CHIFRE
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pag. 36 a 38
Um balanço geral da catástrofe advinda à nossa família imediatamente após a morte de Zé Matias, apresenta, no seguinte panorama do núcleo do Melão, a dureza de vida com que nos deparávamos:
- na casa de minha mãe: Dosanjo, viúva: duas moças, a primeira com 17 anos; quatro meninos, o mais novo com seis anos;.
- na casa de Zé Matias: Madrinha Neném, viúva, e três filhos órfãos, o mais velho com cinco anos;
- na casa de Teté: ela, o marido paralisado pelo reumatismo, um menino de 13 anos, e uma menina de sete anos;
- na casa de Alodias: ela, o marido Ciço Moreira, e uma filha, de dois anos incompletos;
Ao todo, vinte bocas para dar de comer, vinte corpos para vestir e calçar. E não havia saída: a gleba miúda do Melão seria o nosso sustento. Teríamos que trabalhar a terra.
Com quem?
Puxados pela minha mãe, que nos dava o exemplo de coragem e perseverança, cedo de manhã fazíamos fila, enxada às costas, em procura da roça. A orientação e o trabalho mais duro estava a cargo do nosso cunhado Ciço Moreira, que para nós passou a ser “último homem do Melão”, em torno do qual nos agrupamos, crianças de calças curtas, como exercitando uma espécie instinto de sobrevivência. Brocar o mato, queimar a roça, encoivarar, abrir as covas, fazer as cercas – Ciço Moreira era o melhor fazedor de cercas que se conhecia – eram tarefas dele. Nós ficávamos com serviço maneiro: semear, tanger passarinho, passar a enxada na berduega, trazer o almoço.
Era um adjunto de meninos no difícil aprendizado de ser proibido de ter infância. Como me conformar com isso? A inclemência do sol, a formiga nos pés, os espinhos, os garranchos arrancando sangue na cara, as folhas cortando como facas, o grude no corpo todo, e os carreirões do mato para limpar. Acabava um, vinha outro, acabava um, vinha outro, que coisa mais sem fim! E ainda por cima, alguns, pra se mostrarem, inventavam de dar duas por uma na gente, que estava sossegado, sempre atrás. O esforço era grande. O trabalho é que não progredia. Que coisa mais desagradável!
Não seria possível dar uma paradinha e inventar um jeito de fazer desaparecer aquele mato de nossa frente sem ter que passar por tanto suplício?
Inventar a paradinha era possível, embora o mato não esperasse pra crescer:
- Chega, Valdemar, vem ver aqui uma coisa que tu não viu ainda!
- O que foi?
- Uma lagarta de chifre.
Mas, logo a voz de Ciço Moreira que,indo e vindo nas carreiras a limpar, já tinha passado por nós umas três vezes:
- Avie com esse serviço, deixe esse remancho de lado, rapaz!
E sem tempo de entender que a “a lagarta de chifre” era uma lesma, eu, que era a imagem de uma delas, me apresei a chamar a enxada no serviço, puxando mato pro pés. Ali na frente, passei Matias. Passei Micena. Até Valdemar ficou para trás. Ciço, de longe, olhando a minha proeza. Tirei a fileira fora:
- Tá satisfeito?
- Isso mesmo. É assim que cabra macho faz – elogiou-me o cunhado.
- Cabra macho faz é como eu vou fazer agora.
Joguei a enxada pro aceiro:
- De hoje em diante, não tem qem me obrigue a trabalhar mais em roça.
Eu devia estar por volta dos 14 anos, porque é com essa idade que me encontro novamente na casa do meu avô, em Cajazeiras.



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