O INSPETOR
CATURRA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim
contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 54 a 55
Foi por essa época
que me aconteceu um fato que só vou contar porque, de tão incrível, seria
guardado pela memória de quem quer que o tivesse vivenciado, como absolutamente
incomum, e passado adiante com todos os detalhes, para que ninguém se
esquecesse da proeza descomunal.
Felizmente para mim,
narro-o citando a testemunha do fato, ainda viva e verdadeira no meio da
comunidade paraibana, conforme adiante se verá.
E se quisesse
começar causando assombro ou buscando efeitos espetaculares, diria, sem estar
muito longe da realidade, que eu já fiz até parar avião. Mas não se espantem, é
de outro santo, o glorioso Santo Antônio, o privilégio de deter nos ares
objetos mais pesados que o ar. (Segundo a tradição, ele, religiosamente
obediente, teve o cuidado de ir pedir licença aos seus superiores para voltar à
prática que lhe proibiram, de fazer um milagre depois do outro. E, assim,
enquanto discutiam, ficou devidamente suspenso no meio da queda o pedreiro que
lhe invocara o nome ao cair de um andaime).
Eu estava em São
Paulo, caminhando já para o final dos dias em que podia me ausentar da
Prefeitura, sem ter de submeter ao Legislativo Municipal o pedido de
afastamento. Reservei, comprei e marquei com todo o cuidado a passagem de
volta. A viagem tinha data marcada e, como o avião me deixava no Recife, eu
podia me deter na metrópole dos paulistas, ate a véspera de se completarem os
quinze dias fatais que me obrigariam a entregar o cargo ao sucessor, na forma
da lei.
Eis chegado dia e
hora da viagem. Atento à necessidade imperiosa dc dar conta de minhas
responsabilidades, estou no aeroporto de Congonhas antes mesmo da hora
estipulada. Dirijo-me ao balcão de atendimento aos passageiros, despacho mala e
encomendas, dou a revisar o bilhete de passagem, como ordenam as boas normas do
metier. Tudo em ordem? Tudo em ordem. Sento, levanto, sento, levanto. A espera
está ficando monótona de não se aguentar. Vou tomar um cafezinho, que ninguém é
de ferro. Mas, ninguém duvide, continuo atento aos comandos daquela voz
cavernosa que sai pelos alto-falantes do grande salão, uma fala que parece
feita para ninguém entender o que diz. Eu, não. Claro que entendo perfeitamente
o que* vai talando a monstruosidade eletrônica. Senhores passageiros da
Varig, finalmente! Senhores passageiros da Varig com destino ao Rio de Janeiro,
Recife e Lisboa, apresentem as suas despedidas, embarque pelo portão A cumbuca
metálica repete a cantilena, a gente tem que apurar o ouvido. Portão B, portão
B, saio procurando pelo imenso corredor onde fica o embarque para a viagem internacional. Beleza, vai ser uma viagem
internacional, com gentileza da Varig ainda por cima. Pronto, portão B é este
aqui. Posto-me com a solenidade que o caso requer, como um prefeito prestes a
retomar o poder. Esta é última
chamada para os passageiros do vôo (qual é numero do voo?) da Varig com destino ao Rio de Janeiro
Recife e Lisboa. Caramba, se é assim, por que não porque não aparecem os outros
companheiros de viagem? Será que eu vou embarcar sozinho? Já dá até para
desconfiar, vai sobrar gentileza. Olho prum lado e pra outro, não aparece ninguém
eu ali parado num corredor que não se abre. Nunca ouvi dizer disso.
- O senhor é passageiro do voo que vai pro
Rio, pra Recife, pra...
- Sou, sim.
- Pelo amor de Deus, corra depressa o quanto possa, se brincar não vai poder embarcar mais.
- Pelo amor de Deus, corra depressa o quanto possa, se brincar não vai poder embarcar mais.
- Mas o que foi que houve?
- O senhor estava esperando no lugar
errado.
- Mas foi esse o lugar que foi dado no
alto-falante.
- Foi. Mas aquele cara deve estar bêbado.
Ele trocou os portões de embarque. O senhor vai num voo internacional, e o
portão é outro.
Desesperado tanto
quanto eu, o homem me entrega aos cuidados de uma moça que corre por cima dos
sapatos altos e da saiazinha apertada para fazer aceno ao comandante da
aeronave. Os homens que já haviam retirado a escada de acesso ao avião saem na
carreira a apanhá-la de volta. Todos reconhecem que foi uma falta inexplicável
o que acabaram de fazer com o prefeito de Cajazeiras, que amanhã, sem falta, tem
que reassumir o seu posto.
Todos, menos o
piloto, que não quer conversa. Do alto de sua cabine e da sua ainda mais alta
importância, mostra o relógio para a moça desconsolada e lhe diz que não vai
ser besta de perder o horário.
Que situação, hein?
Como é que vai ficar isso, mocinha?
- É, vamos voltar ao balcão.
Aí tratam de colocar
panos mornos na ferida, certos de que podem contornar o caso.
- Façam-me o favor, coloquem-me em contato
com o gerente.
O homem se
apresenta, também inchado de superioridade:
- O senhor devia ter ido para o lugar certo
esperar o embarque.
O senhor parece que
não está sabendo bem do que se trata. Pergunte direitinho ao seu pessoal aí o
que aconteceu.
Aparecem os outros
funcionários, formam um bolo ao lado do chefe.
- Acontece que não podemos fazer nada. A
ponte aérea para o Rio...
- Pois é, o senhor manda parar o avião no
Rio e me bota no primeiro voo da ponte aérea.
- Já está encerrada a ponte aérea.
- Então dê um jeito. Outro voo.
-,Hoje não tem mais voo
para o Rio.
E preciso eu mostrar
ao homem, com toda clareza, do que se trata:
- Você tem duas saídas e para mim tanto
faz, pode ser uma ou outra. Ou para esse avião no Rio de Janeiro até que o
alcance, nem que seja a pé, ou então freta um avião pra ir me deixar agorinha
mesmo no Recife.
O gerente coça a
cabeça, embaraçado com o inusitado da situação. Mas eu insisto que ele não pode
esperar para tomar uma decisão quando queira:
- Vamos lá, compadre. Tem que ser agora.
Quando menos espero,
vejo-me embarcado num teco-teco, só eu e o piloto, diretamente para o Rio de
Janeiro. Se este catavento voador resistir até lá, tudo bem. Até nem parece,
ei-lo aterrizando no Santos Dumont. Antes que pare o motor, estou à frente de
um carro especial com ordem de me levar em disparada para o outro aeroporto, o
do Galeão. Falta só acionar as sirenes para liberar o trânsito.
- O senhor não faz ideia do que isso veio
nos causar no aeroporto - diz-me o rapaz que acompanha o motorista.
- Posso imaginar.
No Galeão, é ainda
maior o vexame estampado no rosto de todos. Quando chego, levam-me, quase me pegando
pelas mãos, para imediatamente ir tomar o lugar que me negaram.
Ao entrar, a
primeira pessoa que avisto é ninguém menos que Epaminondas Braga, conhecido e
respeitado comerciante de Cajazeiras, tomado de espanto:
- Não, Chico, não é possível! Quando o
piloto nos comunicava a cada minuto que o voo estava interrompido porque
tínhamos que esperar um prefeito desses aí, eu poderia esperar que fosse
qualquer pessoa, menos você. Faz uma hora e meia que este avião está parado e a
gente padecendo nesse calor do Rio. Tudo por sua causa, Chico!
Não dando para me
dirigir a todos os passageiros, pedi desculpas ao meu amigo, hoje residente em
Campina Grande, a quem incluo como testemunha do ocorrido, para que ninguém
duvide do que é capaz um prefeito numa situação de aperto.
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