sábado, 20 de abril de 2013

27 NOITE ALTA, CÉU RISONHO


NOITE ALTA, CÉU RISONHO
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 61a 63


Mas, acima de tudo, era nas noites de serestas que mais nós quebrávamos a monotonia da vida em nossa vila esquecida. Uma vez por mês, pelo menos, conforme combinado, nós nos juntávamos em frente à mercearia de Majestoso Gondim e saíamos noite a dentro a cantar. Era um grupo afinado na voz e no sentimento. Renato Gondim e seu irmão Santino puxavam pelas cordas dos violões. Zeca Ferreira, Leonísio, filho do Delegado Zé Granjeiro, e eu acompanhávamos em respeitoso silêncio ou em solos dos mais inspirados. A melhor voz era a de Majestoso Gondim, abrindo-se em barítono à porta de uma das nossas namoradas, embriagada de êxtase:
O luar cai sobre a mala Qual uma chuva de prata De raríssimo esplendor.
Só tu dormes, não escutas o teu cantor.
Tínhamos por princípio não ingerir um único txugo de bebida alcoólica. Lembro que uma vez, como os tocadores se atrasassem em seu compromisso para além do tempo previsto - de meia noite a uma hora da manhã - Zeca Ferreira e Leonísio me desafiaram para ver quem bebia uma garrafa de Madeira de Lei sem titubear. Era uma provocação à nossa inexperiência etílica. Para descartá-la propus:
Tudo bem. Aceito entrar na brincadeira, com uma condição: abrimos a garrafa e a dividimos em três copos cheios. Cada um de nós se obrigará a tomar a cachaça de uma só vez e sem cuspir no fim.
Para meu desapontamento, os meus colegas aceitaram o desafio. Em vez de uma garrafa, tomamos três, repetidamente. Tudo parecia uma patuscada inocente, menos para Zeca Ferreira que quase perdeu as tripas ao desfazer-se do álcool mal-amigo.
Comportadíssimos na serenata, nós nos permitíamos de vez em quando sair do sério, quando elas terminavam. Tendo encontrado certa vez, na mercearia de Majestoso, uns molhos de palha de carnaúba para fazer cangalha, nós resolvemos esticar a noite numa presepada de causar inveja ao melhor truão de picadeiro. Cobrimo-nos com essas palhas, amarrando-as com barbante, encobrindo o corpo todo, da cabeça aos pés. Com voz de assombração, saímos em bando, "rezando" num vozerio soturno no rumo do cemitério. A vilazinha do Umari era tão tranquila àqueles tempos, que um de seus habitantes, tendo se deitado na própria calçada para aproveitar o fresco da noite, aí adormeceu, deixando a casa aberta. Quando acordou em pleno sono com o barulho daquelas "almas do outro mundo", correu como um tresloucado a fechar portas e janelas. Indo e vindo em torno do cemitério, nós continuamos a "reza". Na manhã do dia seguinte, não foi surpresa ver o coitado ir procurar o coronel José Leite Ribeiro para contar-lhe o ocorrido. Quatro soldados apareceram na semana seguinte para patrulhar a noite do Umari. Só agora saberão que aquilo não passava de uma pândega de rapazes se divertindo noite a dentro numa rua deserta.


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sábado, 6 de abril de 2013

50 UM AVIÃO À ESPERA

O INSPETOR CATURRA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 54 a 55

Foi por essa época que me aconteceu um fato que só vou contar porque, de tão incrível, seria guardado pela memória de quem quer que o tivesse vivenciado, como absolutamente incomum, e passado adiante com todos os detalhes, para que ninguém se esquecesse da proeza descomunal.
Felizmente para mim, narro-o citando a testemunha do fato, ainda viva e verdadeira no meio da comunidade paraibana, conforme adiante se verá.
E se quisesse começar causando assombro ou buscando efeitos espetaculares, diria, sem estar muito longe da realidade, que eu já fiz até parar avião. Mas não se espantem, é de outro santo, o glorioso Santo Antônio, o privilégio de deter nos ares objetos mais pesados que o ar. (Segundo a tradição, ele, religiosamente obediente, teve o cuidado de ir pedir licença aos seus superiores para voltar à prática que lhe proibiram, de fazer um milagre depois do outro. E, assim, enquanto discutiam, ficou devidamente suspenso no meio da queda o pedreiro que lhe invocara o nome ao cair de um andaime).
Eu estava em São Paulo, caminhando já para o final dos dias em que podia me ausentar da Prefeitura, sem ter de submeter ao Legislativo Municipal o pedido de afastamento. Reservei, comprei e marquei com todo o cuidado a passagem de volta. A viagem tinha data marcada e, como o avião me deixava no Recife, eu podia me deter na metrópole dos paulistas, ate a véspera de se completarem os quinze dias fatais que me obrigariam a entregar o cargo ao sucessor, na forma da lei.
Eis chegado dia e hora da viagem. Atento à necessidade imperiosa dc dar conta de minhas responsabilidades, estou no aeroporto de Congonhas antes mesmo da hora estipulada. Dirijo-me ao balcão de atendimento aos passageiros, despacho mala e encomendas, dou a revisar o bilhete de passagem, como ordenam as boas normas do metier. Tudo em ordem? Tudo em ordem. Sento, levanto, sento, levanto. A espera está ficando monótona de não se aguentar. Vou tomar um cafezinho, que ninguém é de ferro. Mas, ninguém duvide, continuo atento aos comandos daquela voz cavernosa que sai pelos alto-falantes do grande salão, uma fala que parece feita para ninguém entender o que diz. Eu, não. Claro que entendo perfeitamente o que* vai talando a monstruosidade eletrônica. Senhores passageiros da Varig, finalmente! Senhores passageiros da Varig com destino ao Rio de Janeiro, Recife e Lisboa, apresentem as suas despedidas, embarque pelo portão A cumbuca metálica repete a cantilena, a gente tem que apurar o ouvido. Portão B, portão B, saio procurando pelo imenso corredor onde fica o embarque para a viagem internacional. Beleza, vai ser uma viagem internacional, com gentileza da Varig ainda por cima. Pronto, portão B é este aqui. Posto-me com a solenidade que o caso requer, como um prefeito prestes a retomar o poder. Esta é última chamada para os passageiros do vôo (qual é numero do voo?) da Varig com destino ao Rio de Janeiro Recife e Lisboa. Caramba, se é assim, por que não porque não aparecem os outros companheiros de viagem? Será que eu vou embarcar sozinho? Já dá até para desconfiar, vai sobrar gentileza. Olho prum lado e pra outro, não aparece ninguém eu ali parado num corredor que não se abre. Nunca ouvi dizer disso.
-       O senhor é passageiro do voo que vai pro Rio, pra Recife, pra...
-       Sou, sim.
-       Pelo amor de Deus, corra depressa o quanto possa, se brincar não vai poder embarcar mais.
-       Mas o que foi que houve?
-       O senhor estava esperando no lugar errado.
-       Mas foi esse o lugar que foi dado no alto-falante.
-       Foi. Mas aquele cara deve estar bêbado. Ele trocou os portões de embarque. O senhor vai num voo internacional, e o portão é outro.
Desesperado tanto quanto eu, o homem me entrega aos cuidados de uma moça que corre por cima dos sapatos altos e da saiazinha apertada para fazer aceno ao comandante da aeronave. Os homens que já haviam retirado a escada de acesso ao avião saem na carreira a apanhá-la de volta. Todos reconhecem que foi uma falta inexplicável o que acabaram de fazer com o prefeito de Cajazeiras, que amanhã, sem falta, tem que reassumir o seu posto.
Todos, menos o piloto, que não quer conversa. Do alto de sua cabine e da sua ainda mais alta importância, mostra o relógio para a moça desconsolada e lhe diz que não vai ser besta de perder o horário.
Que situação, hein? Como é que vai ficar isso, mocinha?
-       É, vamos voltar ao balcão.
Aí tratam de colocar panos mornos na ferida, certos de que podem contornar o caso.
-       Façam-me o favor, coloquem-me em contato com o gerente.
O homem se apresenta, também inchado de superioridade:
-       O senhor devia ter ido para o lugar certo esperar o embarque.
O senhor parece que não está sabendo bem do que se trata. Pergunte direitinho ao seu pessoal aí o que aconteceu.
Aparecem os outros funcionários, formam um bolo ao lado do chefe.
-       Acontece que não podemos fazer nada. A ponte aérea para o Rio...
-       Pois é, o senhor manda parar o avião no Rio e me bota no primeiro voo da ponte aérea.
-       Já está encerrada a ponte aérea.
-       Então dê um jeito. Outro voo.
-,Hoje não tem mais voo para o Rio.
E preciso eu mostrar ao homem, com toda clareza, do que se trata:
-       Você tem duas saídas e para mim tanto faz, pode ser uma ou outra. Ou para esse avião no Rio de Janeiro até que o alcance, nem que seja a pé, ou então freta um avião pra ir me deixar agorinha mesmo no Recife.
O gerente coça a cabeça, embaraçado com o inusitado da situação. Mas eu insisto que ele não pode esperar para tomar uma decisão quando queira:
-       Vamos lá, compadre. Tem que ser agora.
Quando menos espero, vejo-me embarcado num teco-teco, só eu e o piloto, diretamente para o Rio de Janeiro. Se este catavento voador resistir até lá, tudo bem. Até nem parece, ei-lo aterrizando no Santos Dumont. Antes que pare o motor, estou à frente de um carro especial com ordem de me levar em disparada para o outro aeroporto, o do Galeão. Falta só acionar as sirenes para liberar o trânsito.
-       O senhor não faz ideia do que isso veio nos causar no aeroporto - diz-me o rapaz que acompanha o motorista.
-       Posso imaginar.
No Galeão, é ainda maior o vexame estampado no rosto de todos. Quando chego, levam-me, quase me pegando pelas mãos, para imediatamente ir tomar o lugar que me negaram.
Ao entrar, a primeira pessoa que avisto é ninguém menos que Epaminondas Braga, conhecido e respeitado comerciante de Cajazeiras, tomado de espanto:
-       Não, Chico, não é possível! Quando o piloto nos comunicava a cada minuto que o voo estava interrompido porque tínhamos que esperar um prefeito desses aí, eu poderia esperar que fosse qualquer pessoa, menos você. Faz uma hora e meia que este avião está parado e a gente padecendo nesse calor do Rio. Tudo por sua causa, Chico!
Não dando para me dirigir a todos os passageiros, pedi desculpas ao meu amigo, hoje residente em Campina Grande, a quem incluo como testemunha do ocorrido, para que ninguém duvide do que é capaz um prefeito numa situação de aperto.

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26 O CASAL PIMENTA


CASAL PIMENTA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 60 a 61


No Umari não tínhamos quase nenhum meio de diversão, nenhum cinema, nenhuma festa. Mas a criatividade dos jovens compensava a falta de opções para o lazer.
Anoto com saudade o nome de dois velhinhos, donos de uma lanchonete em que infalivelmente nos reuníamos toda noite, cada um de nós tratando de trazer para o encontro a estripulia mais original. O casal Pimenta nos recebia com um sorriso, certo de contar com a nossa companhia para as suas horas de solidão. E, por piores que fossem as nossas malinagens, nós pagávamos aos velhinhos, com toda exatidão, todos os estragos que fazíamos,
Sim, porque éramos campeões em tramas e tretas para encher a paciência do casal. Quantas vezes eu misturava sal com farinha e café, ou deixava o açucareiro no ponto de soltar a tampa e derramar-se sobre a xícara de algum freguês desavisado?
Mais surpreendentes eram os ardis que armávamos contra os próprios velhinhos. Como eles enxergavam com muita dificuldade e à noite não contávamos com luz elétrica, nós amarrávamos uma linha de costura na asa de uma xícara sobre o pires e, escondendo-a por debaixo da toalha, descendo pela perna da mesa, pedíamos a um dos velhinhos que a segurasse da calçada. Os outros, de dentro, <|u.melo viam o puxavante na xícara e esta se movendo "por m mesma", pulavam de lado, simulando o espanto:
O que é isso, seu Pimenta? A sua casa está mal-assombrada.
0 curioso nessa história é que os velhinhos alternavam as suas zangas, de modo a não perderam a assiduidade de seus baderneiros. Quando um se aborrecia, logo o outro tomava a defesa daqueles jovens que, mesmo cm meio a tanta bulha sem maiores conseqüências, lhes traziam algumas horas de entretenimento e uns trocados para o sustento dos dias monótonos.

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