sábado, 22 de junho de 2013

30 - CAJAZEIRAS DO PADRE ROLIM (1), Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

CAJAZEIRAS DO PADRE ROLIM (1)
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

pags. 64 a 66 
- Compadre Chico!
A voz vinha de dentro do corredor, a pressa dos passos marcando o chão de tijolos lisos.
- Compadre Chico!
Por cima das quatro paredes do banheiro ao ar livre, no quintal da velha pensão em que me hospedava, conheci o vulto do meu cunhado Chagas Gouveia.
- Compadre, vim lhe dizer uma coisa. Se apresse, que o negócio é sério.
O que poderia ser? Minha irmã Stela já havia descansado do primeiro filho. Se algo de mal lhe tiveste acontecido, não seria certamente o marido que viria me trazer a notícia. O meu “povo” do Melão eu tinha visitado havia menos de um mês, e todos estavam bem.
Mas Chagas não desmontava a cara de alarme. Atirei as últimas lapadas d’água no corpo e saí pra me entender com o cunhado:
- O que houve, compadre?
- O que houve foi que Valdemar desfez o noivado de repente e está lá feito doido. O pessoal tá pedindo pra você dar um pulinho no Melão.
Mandei selar o animal enquanto me aprontava às pressas. Era por volta da seis da tarde. Sem demora viajamos e, como sempre, por volta da meia noite estávamos em casa. De pronto percebi que o meu cunhado tinha exagerado no relato. Em todo caso, convidei meu irmão a voltar comigo para o Umari, de onde depois sairíamos a um passeio pelas cidades próximas da Paraíba. Mas não revelei logo os planos. Preferi tirar a limpo a conversa Chaga do Melão sobre Valdemar:
- Que conversa é essa que você acabou o casamento e está doido?
- Olha, acabar o casamento é uma questão pessoal. Quero guardar comigo as últimas razões. Para faltar a verdade, eu fiz foi inventar que estou doido, e é pra casar que estou doido.
- se é assim, por que desfez o noivado?
- Por isso mesmo. Estou doido pra casar e estou doido para sair do Melão. E vejo cada vez mais claro que uma coisa não dá certo com a outra. Se eu casar, nunca mais vou poder deixar isso aqui, que, de fato, não tem grande futuro. Aqui ano dá pra crescer na vida.
Então eu vi o quanto tinham sido iluminados os passos de Chagas Gouveia, ao me levar aquele notícia alarmante, numa encruzilhada definitiva da minha vida, e com faria sentido o plano de “férias” que tiraríamos entre Cajazeiras, Antenor Navarro, Belém (depois Canaã e, atualmente, Uiraúna) e Triunfo.
- Se o problema é esse, Valdemar, você pode ficar tranqüilo, que está resolvido. Eu pensava, há mais tempo, em chamá-lo a entrar comigo no comércio, mas me sentia sem capital suficiente para enfrentarmos o negócio. Agora, já posso lhe dizer que estou pronto para lhe fazer o convite.
Atento ao meu despacho providencial, meu irmão tratou de encontrar outra noiva. Para a maior surpresa – ou para confiar que “casamento e mortalha no céu se talha” – poucos dias depois estava ele de casamento marcado com uma jovem chamada Maria Augusta de Sousa, também de noivado recém-encerrado, e cujo ex-noivo – Zé de Nezinho, primo dela – logo se casaria, por sua vez, com a ex-preferida de Valdemar.
A festa deu a 9 de janeiro de 1948, com desdobramentos estrondosos entre Umari, o Melão e o Sítio Arara, na Paraíba, de onde a jovem era proveniente, filha de um cidadão sempre meticuloso e alinhado, Augusto Bernardino de Sousa, tão moço ainda e com todos os fios de cabelo como capuchos de algodão. Conheci-o pela primeira vez numa ocasião em Ipaumirim, quando curioso, indaguei sobre aquele homem de alva cabeleireira brilhando ao sol, causando inveja por montar o ginete mais bem equipado entre os presentes. Não podia então imaginar que as nossas vidas se cruzariam e me entrelaçariam depois, com liames indestrutíveis.
Para o sítio de seu Augusto acorreram os convidados, familiares e amigos dos noivos. Como testemunha do feito, tratei de fretar o transporte coletivo mais avançado do que se podia dispor àqueles tempos. Fui a Ipaumirim e lá contratei os serviços de Zé Saraiva – ou Zé de Péu, como era alcunhado – dono do único caminhão existente na cidade. O trabalhar de Zé de Péu iria ser o de transportar o pessoal do Umari, passando pelo Melão, entrando em Ipaumirim e, apanhando todos os passageiros que quisessem assistir o casamento em Cajazeiras, prolongando-se o percurso até a Arara, para o grande baile a cargo do afamado sanfoneiro Pedro Bernardinho.
Foi uma festa de arromba, as núpcias da primeira filha do seu Augusto. Primeiro na Arara e depois no Melão, nunca antes se teve notícia de tanta gente reunida, disputando o privilégio de andar em carroceria do caminhão.
Para os meus amigos do Umari – os irmãos Gondim, Zeca Ferreira, Leonísio Granjeiro, sobretudo – aquele iria ser um encontro de despedidas, e eles se desvelaram em tiradas de humor e animação, para marcar antecipadamente a saudade do momento que viria, com imensa dor para mim – dor física, material e acachapante, dor de esmagar o peito – o meu adeus de Umari, para sempre.




segunda-feira, 10 de junho de 2013

29 - UM BANDIDO NA PRAÇA, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

UM BANDIDO NA PRAÇA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 64 a 66


Apesar da distância que me separava da família e da dificuldade em me ausentar de minhas obrigações no Umari, eu tia todos os meses ao Melão. A viagem era feita nos fins de semana, a cavalo. Saía no sábado pela seis da tarde, chegando ao destino cedo da madrugada. A volta, no domingo, era no mesmo horário, percorrendo eu invariavelmente, mais de sete léguas à luz da lua ou na escuridão da noite.
Nunca fui metido a bravatas, mas também nunca o medo ou a intimidação tolheram os meus passos ou cercearam a minha iniciativa.
Porém, quando voltei ao Umari naquela manhãzinha de 16  de janeiro de 1948, nunca uma idéia se imprimiu tão clara em minha mente e tão firme em minha decisão:
- É profundamente lamentável, mas eu não posso mais ficar aqui neste lugar.
O que aconteceu?
Quinze anos haviam se passado do acontecimento fatídico já rememorado nessa crônica (quer relembrar? Clique no link). Como se fosse um dia igual a todos na mais ordeira vilazinha cearense, desmontei, guardei os arreios, dei a gorjeta ao moleque que ia tratar o cavalo. Ansioso pelas novidades, mal tomei o café matinal, saí apressado para a loja, que já estava aberta. Renato Gondim me esperando:
- Você foi procurado neste final de semana por uma figura muito estranha.
- Onde?
- Aqui na loja. Ele esteve sentado por mais de duas horas aí nesse banco onde você está. Isso, a primeira vez. Depois teve outras.
- Qual era o nome dele?
- Ele disse, mas não me lembro agora.
- Como era ele?
- Um sujeito mal-encarado, moreno, e magro, um tanto recurvado nos ombros, bigode mal trabalhado, cabelo encaracolado, aí pelos quarenta, talvez mais. Alisava o tempo todo o cabo de um punhal e caculo nos quartos ainda mostrava que ele carregava uma arma de fogo na cintura.
Parei penado. Pensei quem poderia ser?
- Ele não disse o que queria, não?
- Não. Mas acho que não precisava. O jeito de quem vinha provocar uma desordem. Ele fez questão de sentar-se e esperar, mesmo a gente tendo dito que você estava viajando e ia demorar. E, quando foi-se embora, disse pra gente que iria voltar, não tardaria.
Eu insistir que o meu amigo lembrasse o nome daquele sujeito.
- Rapaz, deix’eu ver. Não-sei-o-quê-não-sei-o-quê-Ribeiro.
Tão longe tinha ficado os fatos, que não consegui atinar com a sugestão da charada.
- Você não consegue lembrar o primeiro nome?
- Olhe, o que ele mais fez aqui foi medo. E com medo o eu a gente mais faz é esquecer as coisas. Mas, espere: João, João Ribeiro dos Santos.
Era João dos Santos, o assassino de Zé Matias. Não satisfeito de ter sido pago para matar à traição um amigo – o meu irmão José Matias Duarte – ele procurava, passados tantos dias tão dolorosos, atingir outra vez um membro da família Matias Rolim e, como antes, aquele que ia se destacando para elevar o nome e as condições de vida dos que foram precipitados numa longa noite de infortúnios.
- Você ano pode imaginar quem é esse bandido, Renato.
Resumi a história para o meu sócio. Ao final ele parecia mais emocionado  do que eu:
- Acho que está muito claro o que ele quer de você. Prepare-se.
- Eu poderia fazer isso, se fosse só no mundo. Mas tenho outras pessoas em quem pensar, e é também por elas que trabalho. Tomando esse caminho, as coisas não acabariam nunca.
Sabendo da contrariedade que estava causando ao meu amigo, dominado eu mesmo por uma onda avassaladora de emoção, que me devolvia aos meus onze anos na casa do meu avô em Cajazeiras, ali no mesmo instante participei a Renato Gondim minha decisão. Acertamos a maneira de ele e seu irmão me pagarem o meu capital da firma e, com trinta contos de réis e muito maior a saudade, eu deixei aquele lugarejo ainda hoje tão grato para a minha recordação e tão vivo em minha saudade.