domingo, 2 de janeiro de 2011

09 DOUTOR POR TRÊS MESES, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

DOUTOR POR TRÊS MESES
Do livro Do Miolo do Sertão
pag. 21 a 23

Aos oito anos de idade, eu tive pela primeira vez a felicidade de por os pés numa escola. Desde cedo intuí – por experiência nascida do próprio tato, de ver aqueles homens suados, vestindo sacos de sal ou açúcar, com mil remendos, pés descalços mãos calejadas – eu intuí que o analfabeto carrega às vezes, na vida, um fardo mais pesado do que um animal de carga. 
Saber ler. A sedução das letras era tamanha sobre os meus olhos de menino que, antes de ter a Carta de ABC, eu já havia composto o meu próprio código de entendimento do alfabeto. Começou quando me disseram que o A era uma canga de porco. Daí para a frente, à medida que eu individuando casa sinal gráfico, construía minha própria explicação para não esquecê-lo mnnca mais: o B é um menino duas vezes buchudo, o C é uma roçadeira sem cabo, o F é uma foice mal feita, o G é um sujeito que, de tão gordo, abriu a barriga, o H é uma cancela só a trava do meio, o J é um anzol esperando o peixe, o O é a boca de um cachimbo, o Q é um gato de pé com o rabo pro lado, o S é uma cobra se enrolando, o T é um mourão com a trave em cima, o V é um boi de chifre grande o X é uma cruz em pé e de pernas do mesmo tamanho...
Saber ler. A sedução das letras era tamanha sobre os meus olhos de menino que, antes de ter a Carta de ABC, eu já havia composto o meu próprio código de entendimento do alfabeto. Começou quando me disseram que o A era uma canga de porco. Daí para a frente, à medida que eu individuando casa sinal gráfico, construía minha própria explicação para não esquecê-lo mnnca mais: o B é um menino duas vezes buchudo, o C é uma roçadeira sem cabo, o F é uma foice mal feita, o G é um sujeito que, de tão gordo, abriu a barriga, o H é uma cancela só a trava do meio, o J é um anzol esperando o peixe, o O é a boca de um cachimbo, o Q é um gato de pé com o rabo pro lado, o S é uma cobra se enrolando, o T é um mourão com a trave em cima, o V é um boi de chifre grande o X é uma cruz em pé e de pernas do mesmo tamanho...
A mestre era minha irmã Teté, na paciente cantilena da lição: um bê-com-á, bê-a-bá, um bê-com-é, bê-e-bé. A escola era em sua própria casa. Por isso tudo, e pela vantagem de não ter que ir trabalhar todas as manhãs na enxada, eu era um menino privilegiado. Rapidamente passei da Carta de ABC à Cartilha, e senti, com um prazer incomum, que estava descobrindo as fronteiras de um mundo novo. Era uma paixão de encantado. Depois que descobri eu mesmo a capacidade de juntar as letras em palavras, tratei de entender as palavras nas frases. Sem esperar que a professora prescrevesse a lição, eu ia catando, página após página, a sonora reverberação, o fulgor indescritível das primeiras palavras escritas em minha retinas.
Com o Manuscrito – que era esse o nome do livro de cópias – eu fui além dos exercícios nele contidos. Não havia pedaço de papel disponível que não dobrasse e guardasse com cuidado para depois aproveitar em tarefas adicionais de escrita que minha irmã-professora me passava para a noite, à luz do candeeiro.
Assim me foi possível, sem grande surpresa, chegar ao Primeiro Livro e, depois, ir avançando, com o meu próprio esforço, através do Segundo, do Terceiro e até do Quarto livro.
Bom era aos sábados, na hora do Argumento, a sabatina tradicional. A mestra entronizava a palmatória no recinto escolar com o mesmo rigor e impotência, mas, num gesto é magnânimo, declinava de punir ela mesma, os discípulos faltosos. O castigo seria aplicado pelo colega mais atento nos estudos. Então, empunhando a arma ameaçadora, ela interrogava ao primeiro aluno. Para livrar-se do bolo, era suficiente saber a resposta. Quando alguém se embatucava, a mesma pergunta era dirigida ao seguinte. A resposta correta nos dava o direito de tomar da palmatória e aplicar corretivo àquele que incidira no erro.
A minha primeira escola – pobre escola rural de meus sonhos de criança – não chegou a durar mais que três meses. A minha incursão nos segredos do mundo letrado foi interrompida pelo meio, quando, na segunda metade do ano de 1930, eu tive de acompanhar o meu cunhado Ciço Moreira e minha irmã Alodias, casados de pouco, em sua mudança para Lagoa das Braúnas, para a pequena porção de terra do nosso tio Enéias Rolim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário