domingo, 26 de dezembro de 2010

08 MEU DEUS, A CIDADE É ISSO!, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

MEU DEUS, A CIDADE É ISSO!


Do livro Do Miolo do Sertão, pags. 20 a 21.


- Vê se leva também esse menino para se consultar.
Eu concedo sem muito averiguar que devia estar carregado dessas tantas verminoses tão comuns em nossos rincões sertanejos. Zé Matias não ouviu duas vezes o pedido de Mãe Dosanjo. Depressa tratou de me alojar na garupa da montaria e logo alcançamos o Olho d’Água.*

Era a primeira vez na vida que os meus olhos se abriam para um arruado, um pequeno número de casas reunidas, e eu agradeci a Deus pela viagem. Para a referência dos beiradeiros daqueles temos, as ruelas do distrito de Olho d’Água eram a “cidade”. Eu sonhava com o dia em que pudesse visitar uma cidade assim, sinal de distinção com que poucos chegavam a ser agraciados.
Mas, o que é a cidade, é isso? Um reduto de tanto conforto e bem-estar, meu Deus, que nele as pessoas, em pleno dia da semana se dispensam da obrigação do cabo da enxada? Então é verdade? Quer dizer que nem todo mundo morre de fome se não for trabalhar brocando mato, encoivarando, lutando doidamente contras os garranchos, os espinhos, o sol quente, a terra ingrata, pra depois plantar e dividir com a formiga, a lagarta, o gafanhoto, às vezes o porco e o bode, mais tarde o cancão, isso se Deus mandar um inverno que sustente a lavoura?  Então na cidade as pessoas se vestem bem, não é?, não é como no mato em que a gente anda quase nu, descalço, os pés cheios de espinhos, a roupa cheia de carrapicho, a garganta com sede, a barriga com fome?
Oh, na cidade as pessoas falam bonito, são muito distintas, trajam-se com decência. Algumas nem fazem nada, estão é desocupadas, batendo perna no meio da rua pra lá e pra cá! As poucas que dizem trabalhar se escondem atrás dos balcões, de onde se dirigem, cheias de importância, à matutada importuna:
- Às ordens, major!
E os pés-rapados vão deixando o dinheiro:
- Um oito de querosene, uma quarta de farinha, rapadura, azeite.
Deus que me perdoe se eu tanto peço sem nada merecer. Eu aqui dentro de mim devo procurar as minhas melhoras. Que, por enquanto, ninguém saiba, mas eu juro, juro por Deus como um dia eu também vou deixar o mato. Vou morar na cidade.
*(Atual distrito de Felizardo)






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