segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

06 TUDO FOI ONTEM, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

TUDO FOI ONTEM
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
Pags. 248 a 250

6 de dezembro de 1977.
Ponho o ponto final nessas confissões – direi melhor, elas se interrompem – no dia em completo 65 anos de idade. Encerro-me em mim mesmo num último momento de condensação interior, enquanto a meu lado a família, os parentes, os amigos chamam por mim e se aprontam a cantar os parabéns para um pai, o filho e um neto que também celebram no mesmo dia a sua data natalícia.
65 anos! Espanto-me ao fazer as contas: são quase duas dúzias de milheiros de dias, no ocaso dos sóis já passados.
E, no entanto, tudo foi ontem...
Num milagre feito de amor e memória, ordeno neste momento a ressurreição de Matias – do pai, o nome sem rosto do meu pai, e do meu irmão, seu rosto tão presente – da mãe Dosanjo e de tantos que se foram, crisálidas que nos precederam em desprender as asas para a encantação derradeira. Convoco a todos, todos vivos e ressurrectos neste milagre da ubiqüidade amorosa. Fecho os olhos para ver mais, as paredes diáfanas do coração. Todos estão ao meu lado neste momento. Parabéns! Parabéns a todos nestas datas queridas, nesses tantos anos idos vividos, tão diferentes e tão iguais, nesses 65 anos que passaram como peixe pulando na corrente gratuita da vida.
Eu, pecador, me confesso a Deus e a vós, irmãos, que fui uno e fui múltiplo, e sempre igual. Não aprisionei as horas, nem as tristes nem as alegres. Como borboletas voando se foram os dias errantes e, se deles guardei a impressão mais viva, às vezes o total alumbramento, deixei-os passar como dádiva igual de instantes para todos repartidos. Ao pequeno teatro construído com os olhos da mente retornam a paisagem e as cenas de infância, o paraíso tão cedo acabado – a casa do Melão, o baixio, o olho d’água, a bolandeira e o engenho, o cheiro do gado no curral, o vento da noite varrendo o mundo, as goiabeiras mais férteis do mundo, o coqueiro caduco, a voz da minha mãe, a nebulosa sombra do meu pai, a inocência da vida dos irmãos e irmãs – os dias duros do rapaz órfão abrindo, para si e para os seus, o duro caminho pela vida, a fila da Comissão, o trabalho de cassaco, a escolha de sonhos, o balcão de Ipaumirim, as serenatas do Umari, a poeira das estradas indo e vindo de Cajazeiras, os muitos Maranhões em que os meus passos se emaranharam, a vida pública a que me levaram as mãos amigas, o grito da multidão, seu grito de fé e esperança, minha mulher, meus filhos e netos, com quem, à mesma mesa partilho de mais perto o pão das divinas bênçãos para ir depois dividi-lo com os companheiros, dessa humana aventura, apenas bate-me o sol à janela.
Desses milhares de dias idos e vividos, recolho, em notas apressadas, as impressões mais tocantes, os instantâneos mais coloridos, as lembranças mais pungentes, as saudades inapagáveis. Recolho-as e as reparto, como fiz com a vida.
Ficam de fora as emoções indescritíveis.
Tudo foi ontem.

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