sábado, 4 de junho de 2011

17 TERRA, E NUVENS, ESPUMA NAS MÃOS- A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

TERRA, E NUVENS, ESPUMA NAS MÃOS
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 43 a 44
O silêncio dói nos ouvidos. O silêncio, afora esses grilos escondidos, de cantiga repetida no baixio. As chuvas botaram o mundo em verde. O ar treme à altura das retinas.
E esse chocalho, no lengo-tengo monótono... Venho seguindo a novilha no silêncio. Eu e ela. Quase a vi nascer, mas assisti às carícias da mãe, língua longa no pêlo liso, focinho erguendo a bezerrinha mal se agüentando nos pés. Hoje, não. Hoje tai ela bonitona, formosa nas ancas, uma fêmea e tanto. “Mimosa” – fui eu que lhe dei o nome. Mimosa, vou lhe dizer, viu? Você tá demais, tá sabendo? Diabo de touro desrespeitoso, pensa que não escuto o rancor noite a dentro, o chocalho denunciando no curral, eu perdendo o sono? E esse inchaço no balanço do monte de carne preta, convidando com uma almofada! O pingo de sangue coalhado na ponta dos pelos. Touro sem alma. Tentação. Eu sozinho. Mas essa vaca não me espera. Algo me cresce. Mimosa, você podia encostar mais na cerca, Mimosa. E enterrar um pouco mais os pés na areia. Areia fina, fofa, boa nos pés. Terra boa, esse Melão, um pecado. Fazendo covas na areia a gente se deita. E rola se espojando num lençol que chama. Depois, o banho no açude. A gente vai aprendendo. E praticando, praticando o que aprendeu.  Os bichos ensinam de graça a toda hora, os galos com pressa, os porcos no oitão, patos e perus, cabras em choro, bodejando sem decoro, bodes pedintes, e a satisfação violenta do touro, dono de tantas vacas, solene touro. A terra nascem os fios nas bananeiras, as pitombeiras florescem, as canafístulas e os pau-d’arcos se bordam em outro, as goiabeiras pegam carrego. Paganismo. A nuvem vem beber água no baixio. A minha vista escurece, nuvem nos meus olhos. Novilha ingrata. Cada vez se afasta. A nuvem bem baixando, estarei tonto? Subo à cerca, para pegar a nuvem com as mãos. Apoio-me nas estacas, faço força com os pés entre as fendas do varado. Lá embaixo, perto da cacimba, tem gente tomando na latada de folhas secas. Meu Deus, é uma mulher! A nuvem vem passando, é uma mulher! A nuvem vai passando, é uma mulher! É a vez que vejo uma mulher nua. A vaca foi-s’embora. A mulher é uma novilha de raça, da minha raça. Estou só. Eu e ela. Ela nem sabe de mim. Quero gritar. De medo? De prazer? De surpresa? De encantamento? O coração me vem pela boca em galope: se eu gritar, ele salta ao chão. No silêncio, o barulho da água se derramando no corpo da mulher. A espuma do sabão escorregando nas grotas do corpo. De novo o sol. O brilho do corpo ao sol. Os grilos no silêncio. Doem-me os ouvidos. Ânsia, aflição. E um prazer que vem de dentro, me entumescendo, crescendo, se desdobrando. Fecho os olhos. Abro os olhos. Esbugalho os olhos pra ver melhor. Oh, este instante não pode acabar. Esta é chave do paraíso, o parafuso da entrada no céu. A nuvem veio beber água, deixou a mulher. A mulher ficou nua no meio do mundo. Estou tonto. Mas esse instante que não deve acabar já acabou. A nuvem se foi. A mulher não me viu. Eu sozinho. Tenho uma nuvem na cabeça. E um punhado de espuma nas mãos.



 

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