domingo, 26 de dezembro de 2010

08 MEU DEUS, A CIDADE É ISSO!, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

MEU DEUS, A CIDADE É ISSO!


Do livro Do Miolo do Sertão, pags. 20 a 21.


- Vê se leva também esse menino para se consultar.
Eu concedo sem muito averiguar que devia estar carregado dessas tantas verminoses tão comuns em nossos rincões sertanejos. Zé Matias não ouviu duas vezes o pedido de Mãe Dosanjo. Depressa tratou de me alojar na garupa da montaria e logo alcançamos o Olho d’Água.*

Era a primeira vez na vida que os meus olhos se abriam para um arruado, um pequeno número de casas reunidas, e eu agradeci a Deus pela viagem. Para a referência dos beiradeiros daqueles temos, as ruelas do distrito de Olho d’Água eram a “cidade”. Eu sonhava com o dia em que pudesse visitar uma cidade assim, sinal de distinção com que poucos chegavam a ser agraciados.
Mas, o que é a cidade, é isso? Um reduto de tanto conforto e bem-estar, meu Deus, que nele as pessoas, em pleno dia da semana se dispensam da obrigação do cabo da enxada? Então é verdade? Quer dizer que nem todo mundo morre de fome se não for trabalhar brocando mato, encoivarando, lutando doidamente contras os garranchos, os espinhos, o sol quente, a terra ingrata, pra depois plantar e dividir com a formiga, a lagarta, o gafanhoto, às vezes o porco e o bode, mais tarde o cancão, isso se Deus mandar um inverno que sustente a lavoura?  Então na cidade as pessoas se vestem bem, não é?, não é como no mato em que a gente anda quase nu, descalço, os pés cheios de espinhos, a roupa cheia de carrapicho, a garganta com sede, a barriga com fome?
Oh, na cidade as pessoas falam bonito, são muito distintas, trajam-se com decência. Algumas nem fazem nada, estão é desocupadas, batendo perna no meio da rua pra lá e pra cá! As poucas que dizem trabalhar se escondem atrás dos balcões, de onde se dirigem, cheias de importância, à matutada importuna:
- Às ordens, major!
E os pés-rapados vão deixando o dinheiro:
- Um oito de querosene, uma quarta de farinha, rapadura, azeite.
Deus que me perdoe se eu tanto peço sem nada merecer. Eu aqui dentro de mim devo procurar as minhas melhoras. Que, por enquanto, ninguém saiba, mas eu juro, juro por Deus como um dia eu também vou deixar o mato. Vou morar na cidade.
*(Atual distrito de Felizardo)






segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

07 OUTRO PAI, NOSSO IRMÃO JOSÉ MATIAS, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

OUTRO PAI, NOSSO IRMÃO JOSÉ MATIAS 
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pag. 16 a 17

A única “voz de homem” capaz de levar adiante os negócios de Matias Duarte Passos era o caçula do primeiro casamento, José Matias Duarte, com 23 anos quando meu pai morreu.
Zé Matias era uma figura envolvente, carismática mesmo, um líder nato. A sua influência cedo iria extrapolar os limites do Olho d’Água do Melão, para ganhar nome nos sítios em torno e estender-se ao Baixio, a Umari, a Alagoinha (hoje Ipaumirim), até Cajazeiras e Mossoró. Todos admiravam aquele homem atarracado, alegre e sempre disposto a um bom papo. Em casa, nós pequenos o queríamos e respeitávamos como a outro pai. Cunhado de Dosanjo, a quem queria como a sua mãe, Zé Matias era, de fato, o arrimo de nossa família, e, mais, das famílias das irmãs Nanã, viúva, e Teté, cujo marido, Zé dos Torrões, vivia desde muitos anos deitado no fundo de uma rede, entrevado pelo reumatismo.
O nosso querido irmão poderia ter sido o esteio em que nos apoiaríamos na reconstrução do nosso futuro. Mas, cedo também ele nos seria arrebatado, e pela maneira mais violenta.







segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

06 A FAMÍLIA SE MULTIPLICA, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

A FAMÍLIA SE MULTIPLICA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
Pags. 18 a 19

Dos filhos das primeiras núpcias de meu pai, a primeira, Teté, casou em 1914 com José Gonçalves de Oliveira (Zé dos Torrões) – um ano após a celebração do matrimônio de Matias Duarte Passos e Angelina Guedes Rolim. Doiô e Nanã casaram ambas no mesmo dia, em 1917, respectivamente com João Gonçalves de Oliveira (João Branco) e Vicente Gonçalves de Oliveira, os quais não parentes, não obstante os sobrenomes iguais. No ano seguinte ao falecimento de meu pai, Zé Matias, o filho homem, casou-se a 26 de setembro, com Domitília Neném Matias, irmã caçula de Mãe Dosanjo. Curiosamente, Zé Matias, Tornou-se, assim, além de enteado, também cunhado de sua segunda mãe.
Em 1929, casaram-se outra vez duas irmãs no mesmo dia (26 de outubro): Júlia, com o primo Ananias Félix, e Alodias, com Cícero Moreira da Silva, dos Moreira do Cipó, sítio hoje pertencente ao um de Cachoeira dos Índios.
Se o leitor não é supersticioso, eu também não. Mas, se me permite, ofereço-lhe uma curiosidade para o seu cadastro de apreensões. É conhecida no Nordeste a recomendação de evitar-se por todos os meios que dois irmãos ou irmãs subam ao mesmo altar no mesmo dia para a festa de seus esponsais: um dos casais não terá um matrimônio feliz. Verdade ou não, as minhas irmãs Doiô E Nanã casaram-se no mesmo dia, em 1917. Doiô teve vida longa e próspera, ao lado do marido João Branco, e dos filhos, Chico, Hilário e Antônio. Nanã cedo ficou viúva, tendo a ampará-la o filho único, Israel. Mais impressionante foi o sucedido a Júlia e Alodias. Alodias continua ainda hoje, em São Luís do Maranhão, vendo crescer filhos, netos, bisnetos e tataranetos. Júlia mal viu nascer o primeiro filho, que teve poucos dias de vida. O marido faleceu naquele mesmo ano e ela o acompanhou logo a seguir.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

06 TUDO FOI ONTEM, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

TUDO FOI ONTEM
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
Pags. 248 a 250

6 de dezembro de 1977.
Ponho o ponto final nessas confissões – direi melhor, elas se interrompem – no dia em completo 65 anos de idade. Encerro-me em mim mesmo num último momento de condensação interior, enquanto a meu lado a família, os parentes, os amigos chamam por mim e se aprontam a cantar os parabéns para um pai, o filho e um neto que também celebram no mesmo dia a sua data natalícia.
65 anos! Espanto-me ao fazer as contas: são quase duas dúzias de milheiros de dias, no ocaso dos sóis já passados.
E, no entanto, tudo foi ontem...
Num milagre feito de amor e memória, ordeno neste momento a ressurreição de Matias – do pai, o nome sem rosto do meu pai, e do meu irmão, seu rosto tão presente – da mãe Dosanjo e de tantos que se foram, crisálidas que nos precederam em desprender as asas para a encantação derradeira. Convoco a todos, todos vivos e ressurrectos neste milagre da ubiqüidade amorosa. Fecho os olhos para ver mais, as paredes diáfanas do coração. Todos estão ao meu lado neste momento. Parabéns! Parabéns a todos nestas datas queridas, nesses tantos anos idos vividos, tão diferentes e tão iguais, nesses 65 anos que passaram como peixe pulando na corrente gratuita da vida.
Eu, pecador, me confesso a Deus e a vós, irmãos, que fui uno e fui múltiplo, e sempre igual. Não aprisionei as horas, nem as tristes nem as alegres. Como borboletas voando se foram os dias errantes e, se deles guardei a impressão mais viva, às vezes o total alumbramento, deixei-os passar como dádiva igual de instantes para todos repartidos. Ao pequeno teatro construído com os olhos da mente retornam a paisagem e as cenas de infância, o paraíso tão cedo acabado – a casa do Melão, o baixio, o olho d’água, a bolandeira e o engenho, o cheiro do gado no curral, o vento da noite varrendo o mundo, as goiabeiras mais férteis do mundo, o coqueiro caduco, a voz da minha mãe, a nebulosa sombra do meu pai, a inocência da vida dos irmãos e irmãs – os dias duros do rapaz órfão abrindo, para si e para os seus, o duro caminho pela vida, a fila da Comissão, o trabalho de cassaco, a escolha de sonhos, o balcão de Ipaumirim, as serenatas do Umari, a poeira das estradas indo e vindo de Cajazeiras, os muitos Maranhões em que os meus passos se emaranharam, a vida pública a que me levaram as mãos amigas, o grito da multidão, seu grito de fé e esperança, minha mulher, meus filhos e netos, com quem, à mesma mesa partilho de mais perto o pão das divinas bênçãos para ir depois dividi-lo com os companheiros, dessa humana aventura, apenas bate-me o sol à janela.
Desses milhares de dias idos e vividos, recolho, em notas apressadas, as impressões mais tocantes, os instantâneos mais coloridos, as lembranças mais pungentes, as saudades inapagáveis. Recolho-as e as reparto, como fiz com a vida.
Ficam de fora as emoções indescritíveis.
Tudo foi ontem.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

05 NO CABO DA ENXADA, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

NO CABO DA ENXADA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pag. 17 a 18

Pelo inverno de 1926, ao final da gravidez e durante o resguardo de Dosanjo, ainda se encontraram uns restos de paiol em casa, umas cuias de feijão e arroz para temperar com algum bicho do terreiro.
Mas, a partir de 1927, a família teve que procurar o caminho da roça para cuidar da própria sobrevivência.  Contando de início com a ajuda de Zé Matias para o trabalho mais pesado, minha mãe cedo tratou ela mesma de levar os filhos para essa árdua escola, que é ainda hoje a única que se oferece a muitos nordestinos. Primeiro, foram as imãs Alodias, Maria Virgem e Stela. Depois, foi Valdemar. Por fim chegou a minha vez.
Eu acabara de completar seis anos, mas ainda hoje, lembro onde ficava situada a nossa primeira roça. Também guardo bem vivas as lições desse meu primeiro “Livro do Mundo”, nas quais, devo confessar, não era dos mais interessados. Eu mais atrapalhava do que ajudava ao trabalhar dos maiores e, de fato, só não ficava em casa porque não tinha com quem. Inocente das coisas da roça, eu arrancava a lavoura, principalmente os pés de algodão, confundindo tudo com “mato”. Minha mãe me distribuía generosos cascudos pelos prejuízos causados.



segunda-feira, 1 de novembro de 2010

04 O OUTRO MATIAS, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

O OUTRO MATIAS
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pag. 16 a 27

A 26 de fevereiro de 1926, Dosanjo dava à luz o fruto de sua última gravidez. Era um menino moreno como o pai e de feições, entre todos os filhos as mais parecidas com Matias Duarte Passos.
O nome? Não havendo promessa a cumprir, dada a proximidade da perda do marido e vendo a coincidência dos traços fisionômicos, a sugestão e a escolha foram unânimes: o menino seria Matias. Minha mãe amamentou-o em seu luto de viúva; um vestido preto de mangas longas, um preto que só a custo, mais tarde, ela abrandaria no costume do trajes de bolinhas, o “fardamento” das viúvas em nosso velho sertão.
Matias Duarte Rolim, meu irmão caçula, meu companheiro de traquinagens no baixio do Melão, depois meu sócio e principal incentivador na carreira política, é hoje um marco em minha saúde. Em 1963, no pleno vigor dos seus 37 anos, nós o perdemos num trágico acidente automobilístico.



sexta-feira, 22 de outubro de 2010

03 PARAISO PERDIDO , Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte


PARAISO PERDIDO
pag. 15 a 17
Com a perda repentina de meu pai, pouco é dizer que as promessas de prosperidade para a família Matias Rolim derruíram por completo. Tivemos que arrostar sacrifícios imprevistos por pelo menos uma década, numa insuperável corrida de obstáculos. Foi um duro aprendizado que, só à distância, posso contemplar como força acrisoladora do nosso caráter em formação.
Mas, como explicar que, do dia para a noite, tenhamos entrado a conviver com a penúria?
Antes de tudo, convém lembrar que, naqueles tempos, sobretudo no meio rural, não se falava em escrita contábil organizada. O tradicional borrador recebia as anotações das contas de credores e devedores. Esses, últimos, em especial, raramente deixavam comprovante escrito dos débitos assumidos, até mesmo porque, sendo amigos ou achegados ao círculo familiar, era normal se acertarem com Mestre Matias mediante  a contratação de serviços ou com a troca de cereais.
Além disso, meu pai com certeza sofrera pesados reveses nos seus dois últimos anos de vida. Em 1924, impressionado, como outros muitos, com a devastação da seca do 15, o velho Matias deu exagerada crença à uma “profecia” que chamava a atenção para a outra grande seca que estaria às portas. Chefe de numerosa família e responsável pela assistência a muita gente no Melão, ele se pôs a comprar e armazenar um estoque de farinha nunca visto. 1924, ao contrário do que se esperava, trouxe um inverno dos mais férteis. Foi total o prejuízo. A farinha mofou, aos bolões, no depósito.
Já em 1925, o caso do algodão. A expectativa pela nova safra elevou os preços do produto ao patamar de 20 mil réis a arroba, ainda na folha. Era neócio para arrebentar a praça, de fazer perder o juízo. Uns venderam o gado que tinham, outros penhoraram a propriedade por valores ridículos. A ordem era conseguir dinheiro e aplica-lo na compra de algodão. Mestre Matias, embora não tenha feito ousadias de comprometer-se irremediavelmente, não deve ter sido exceção a essa “febre do ouro branco”, dado o bom nome de que desfrutava. Seria impossível prever que o algodão deveria ser entregue a firmas com André Fernandes & Cia., em Mossoró, ou Higino Rolim, em Cajazeiras, a apenas cinco mil réis a arroba. À época da colheita, os preços oficiais caíram 300%.
Se meu pai continuasse vivo, teria certamente encontrado saída para a difícil situação a que as circunstâncias o levaram. Com o seu desaparecimento, porém, ocorreu que a corrida dos credores, no afã de receberem as suas contas, se deu na velocidade contrária à dos devedores em se quitarem com D. Dosanjo.
Minha mãe, além de não dominar maiores detalhes sobre o andamento dos negócios, estava nos últimos meses de gravidez. Acossada por tanta gente voraz, tratou de vender os próprios pertences para honrar a memória do marido. Restou-lhe a pequena propriedade do Melão, que ela teve de dividir com os dozes herdeiros de Matias Duarte Passos.. 








segunda-feira, 11 de outubro de 2010

02 O HOMEM DO MELÃO, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte


O HOMEM DO MELÃO
Pag. 12 a 14
“Morreu o homem do Melão”. A frase, repetida por muito tempo, traduzirá o desamparo com que ficaram, de repente, pelo menos quatro famílias irmãs e mais o círculo ampliado de parentes e amigos. Ao mesmo tempo, será a expressão de saudade e de reconhecimento ao velho Matias, o sertanejo forte que dava a impressão de personificar a cordialidade e a bonomia e que, no entanto, surpreendia, às vezes, por uma coragem incomum.
Corre o mês de março de 1923. O “povo” do Melão está retornando da festa de eleições no Umari, a sede do município. Voltam apavorados, falando baixinho que o bando de Sinhô Pereira, o temível cangaceiro do Pajeú, está atravessando da Paraíba para o Ceará e vai descer até o Melão. Alguns já viram os jagunços amoitados no Canto do Feijão. É um aviso. Sabe-se que eles esperam que as pessoas fujam e deixem casas e propriedades livres para o saque e a pilhagem. Com isso, poupam munição.
Os homens do Melão procuram o velho Matias e lhe aconselham que reúna a família e, como outros muitos, se refugie no mato.
- Não. A minha família vai ficar aqui comigo. Eu não acoito cangaceiro nem volante. Mas também não fiz mal a ninguém. Por isso, não tenho por que me afastar do meu lugar. Não os convido, também não impeço que venham. Vamos recebê-los todos juntos, desarmados, como fazemos com qualquer pessoa.
Os bandidos parecem que tomam conhecimento dessa disposição de meu pai. Lá pros lados de Cajazeirinha, sei deles se trancaram num quarto com uma mulher. Após o estupro, a pobre saiu correndo no rumo do Machado de Lavras, e nunca mais teve coragem de retornar ao seio da família. Romualdo Guedes quis se meter a besta com um dos cabras. Os outros chegaram lhe quebraram uma cabaça na cabeça. Vitalina, a velha, perdeu os anéis, os que carregava nos dedos pra começar, arrancados à força, deixando a carne viva. E, meu Deus!, o que foi isso que fizeram ao pobre Ernesto? No meio do terreiro para a mangofa geral, botaram-lhe uma sela e montaram nele, chicoteando-o como a um animal chucro.
São oito ou nove horas da manhã. O grupo desfila pela vereda em frente à casa do Mestre Matias. As mulheres rezam e tremem. Zé Matias, o único filho do primeiro casamento, volta do baixio, com uma espingarda de matar passarinho ao ombro, sem se dar conta do perigo. Do bando que passa, três cabras se afastam e tomam a direção de nossa casa. Vêm armados até os dentes, vestidos numa farda de mescla lustrosa.
Trocam as primeiras palavras com meu pai, que os recebe como impassível, sentado sobre a mesa no meio da sala, a filha Alodias, amparada entre as pernas. Para a surpresa e, mais, para o espanto geral, Mestre Matias reconhece no chefe dos três um homem chamado Ulisses, que, tempos atrás, como tropeiro, havia carregado algodão da bolandeira do Melão.
- Meu Mestre, vim aqui para lhe dar cobertura, enquanto o bando passa. Mexeu no senhor, mexeu em mim...
Mesmo com essas palavras, um dos malfeitores, ao ver o paiol de milho rente ao telhado, solta uma pilhéria:
- Ô vontade comer pipoca!
E o que tem isso de importante? – rebate-lhe Ulisses.
O cabra manobra o file. Ulisses responde com o mesmo gesto. O babra baixa a arma.
E aquele guarda-chuva no corredor?
- Está desmantelado – responde minha mãe.Ulisses repreende também o outro cangaceiro e recomenda a meu pai que guarde a corona pendurada numa trava de madeira no teto, pois ali está exposta à ambição dos cangaceiros. Outros jagunços poderão ainda passar e ele não estará presente.Zé Matias aparece. O almocreve dá-lhe um chapéu de massa. O café servido. Ao abrir o bornó para fumar, o cangaceiro presenteia meu pai com duas carteiras de cigarro e se queixa que está levando muito dinheiro em moeda. As moedas pesam. Pode o velho Matias trocar esse dinheiro por cédulas? Cinqüenta mil reis, serve. Meu pai dá-lhe vinte mil réis em cédulas e recusa as moedas em troca.
O cangaceiro agradece e, com os companheiros, apressa o passo para juntar-se ao bando que já passou.



sábado, 18 de setembro de 2010

01 UM NOME SEM ROSTO, Do livro Do Miolo do Sertão. A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

UM NOME SEM ROSTO
pags. 8 a 12

Os dias, de tão bons, são todos iguais. Tudo é igual nos horizontes de nossa infância sem limites, tempo claro com cheiro de curral e melaço de engenho. O sítio Olho d’Água do Melão se esconde como um segredo ao pé da serra. Graças a Deus. Lá em cima é que está a estrada que divide o Ceará da Paraíba. Na estrada passam tropas de burros carreando algodão, oiticica, rapadura. Às vezes os burros se espantam e desgarram com o ronco dos primeiros caminhões. Como podem as pessoas na estrada adivinhar que, nessa grota escondida, Deus deixou um pedaço do seu paraíso para os filhos do Mestre Matias?
A meninada vai abrindo os olhos ao mundo, quase cuidando de não crescer, no medo inconsciente de que o paraíso desapareça e o mundo perca o seu encanto.
Aos poucos, é verdade, se alongam os idos de 1913, quando o paraibano Matias Duarte Passos, já viúvo por quatro anos, encontra a jovem Angelina Guedes Rolim – Dosanjo, como passará a ser conhecida – do mais tradicional tronco de Cajazeiras, e com ela constrói a sua segunda família. Uma família que ele vai fazendo crescer com pressa do nordestino. Nesse novembro de 1925, aí já estão Alodias, com onze anos, Maria Virgem, com dez, Stela, com oito, e os meninos Valdemar, com quatro, Francisco, com três, e o caçula, Micena, com menos de dois. E a mulher, grávida de sete meses, está a seu lado para garantir que, com as bênçãos de Deus, terão novo rebento na família entre fevereiro e março de 26.
Esses, os filhos pequenos. Porque D. Dosanjo tem outros “filhos” do primeiro casamento de Matias: Teté, Doiô e Nanã, já se casaram, pois têm quase a mesma idade de Mãe Dosanjo. Em casa estão ainda a Júlia, a mais nova das mulheres, e José Matias, com 21 anos.
A casa não é tão grande, mas está bem plantada no meio do sítio, de paredes meias com a bolandeira e o engenho. À frente, o amplo pátio que termina na porteira do curral. Da calçada alta se avistam o açude e a vazante. O quintal abre para o baixio, por onde o olho d’água se derrama em córrego.
E que mundo de fartura! Além do leite, do queijo e da coalhada, temos a rapadura, a batida e o alfenim, mas a cana de açúcar fácil de descascar o rasgar no dente, depois da colheita no eito e quebrada no joelho. A banana babona será a “marca” de Mãe Dosanjo na memória de filhos e netos. Os mais velhos passam horas e mais horas nos mais altos das goiabeiras, as mais férteis goiabeiras de que se tem notícias. Aos pequenos contam histórias encantadoras: o coqueiro do quintal velho também já não sabe o que faz: em vez de botar coco, está dando quiabo, maxixe, cebola, coentro. De outro, mais pro meio do baixio, se diz que está estragado por causa da saparia que tem ao pé: toda vez que a gente vai abrir um coco para beber a água, salta um caçote de dentro dele.
Esse paraíso infantil tem na pessoa de “Padinho Matias” ou “Meu Mestre”, como é chamado por muitos, aquele que o plantou e que assegura para todos ao redor.
Mestre Matias é um homem moreno, talhado na média estatura sertaneja, franzino e ágil. Os cabelos partem de um ponto definido na testa e se repartem sobre as orelhas,  para dar destaque ao brilho dos olhos claros. De nada disso eu me lembro, mas ainda hoje ouço dizer que meu pai era muito querido como professor de todos os que sabiam ler no Melão, além de Juiz de Casamentos, nomeado que foi pelo Presidente do Ceará, Antônio Pinto Nogueira Accioly. Enfim, um homem que inspirava paz e serenidade. Par ele também, junto com a mulher e os filhos, os dias eram todos iguais.
Mas o que  foi isso que meu pai viu lá para o Alto da Aroeira? São dez horas da manhã. Matias está em casa para o almoço, conforme é tradição nestes tempos. Levanta-se para sair. Do alto da calçada vê um boi que está comendo a roça. Não tendo por quem chamar naquele momento, corre ele mesmo a tanger o animal. Mas onde está o caminho da saída? E por que, agora ele se sente, de súbito, mais atordoado que o bicho, uma coisa estranha a fisgá-lo próprio dentro? Meu pai volta para casa quase se arrastando. A dor é enorme. Ele se prosta numa rede e clama por socorro. São muito poucas horas as possibilidades de removê-lo dali, ele ao suportaria ser carregado. Dão-lhe remédios caseiros, fazem-lhes sucessivas massagens. Mestre Matias chama a família. O que mais lastima é deixar a jovem esposa carregada de crianças para criar. É inútil consolá-lo. Ele está consciente do que se passa:
- Estou me acabando. Deus me receba.
Mas a agonia passa por momento. Ele se senta. Faz algumas recomendações à mulher e abençoa os filhos. Micena, o filho caçula, sem saber o que estado´afazendo, lhe entrega um brinquedinho tosco que tem em suas mãos e coloca as suas mãos dentro das do pai, balbuciando palavras que ainda não sabe articular.
São duas e meia pra três da tarde de terça-feira, 24 de novembro. Meu pai solta o corpo contra rede. Minha mãe sacode:
- Corram, Matias está morrendo!
No dia seguinte, é no colo de Alodias, minha irmã mais velha, que vejo pela última vez o rosto de meu pai, no caixão em meio à casa. Quando o enterro sai, eu choro porque vejo os outros chorarem! Mas eu sei que sou um menino de três anos incompletos para quem acabaram os dias bons e iguais. O paraíso acabou.
Me pai era um homem de 64 anos , que nunca antes houvera se queixado de doença alguma. Do Mestre Matias, tão querido e lembrado por todos, não ficou, porém um único retrato que pudesse guardar para os filhos os traços do seu rosto. Reconstuo pela memória dos irmãos mais velhos a nebulosa lembrança que tenho de sua figura, sem poder fixar na rentativa um perfil definido de sua pessoa.
Ao fazer este registro, dou por mim diante de tantos leitores anônimos, contando-lhes os passos marcantes de minha trajetória. Pergunto-me se não estou procedendo assim, numa tentativa inconsciente de compensar para os meus filhos o que meu pai não teve tempo de fazer com os seus.