sábado, 6 de abril de 2013

50 UM AVIÃO À ESPERA

O INSPETOR CATURRA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 54 a 55

Foi por essa época que me aconteceu um fato que só vou contar porque, de tão incrível, seria guardado pela memória de quem quer que o tivesse vivenciado, como absolutamente incomum, e passado adiante com todos os detalhes, para que ninguém se esquecesse da proeza descomunal.
Felizmente para mim, narro-o citando a testemunha do fato, ainda viva e verdadeira no meio da comunidade paraibana, conforme adiante se verá.
E se quisesse começar causando assombro ou buscando efeitos espetaculares, diria, sem estar muito longe da realidade, que eu já fiz até parar avião. Mas não se espantem, é de outro santo, o glorioso Santo Antônio, o privilégio de deter nos ares objetos mais pesados que o ar. (Segundo a tradição, ele, religiosamente obediente, teve o cuidado de ir pedir licença aos seus superiores para voltar à prática que lhe proibiram, de fazer um milagre depois do outro. E, assim, enquanto discutiam, ficou devidamente suspenso no meio da queda o pedreiro que lhe invocara o nome ao cair de um andaime).
Eu estava em São Paulo, caminhando já para o final dos dias em que podia me ausentar da Prefeitura, sem ter de submeter ao Legislativo Municipal o pedido de afastamento. Reservei, comprei e marquei com todo o cuidado a passagem de volta. A viagem tinha data marcada e, como o avião me deixava no Recife, eu podia me deter na metrópole dos paulistas, ate a véspera de se completarem os quinze dias fatais que me obrigariam a entregar o cargo ao sucessor, na forma da lei.
Eis chegado dia e hora da viagem. Atento à necessidade imperiosa dc dar conta de minhas responsabilidades, estou no aeroporto de Congonhas antes mesmo da hora estipulada. Dirijo-me ao balcão de atendimento aos passageiros, despacho mala e encomendas, dou a revisar o bilhete de passagem, como ordenam as boas normas do metier. Tudo em ordem? Tudo em ordem. Sento, levanto, sento, levanto. A espera está ficando monótona de não se aguentar. Vou tomar um cafezinho, que ninguém é de ferro. Mas, ninguém duvide, continuo atento aos comandos daquela voz cavernosa que sai pelos alto-falantes do grande salão, uma fala que parece feita para ninguém entender o que diz. Eu, não. Claro que entendo perfeitamente o que* vai talando a monstruosidade eletrônica. Senhores passageiros da Varig, finalmente! Senhores passageiros da Varig com destino ao Rio de Janeiro, Recife e Lisboa, apresentem as suas despedidas, embarque pelo portão A cumbuca metálica repete a cantilena, a gente tem que apurar o ouvido. Portão B, portão B, saio procurando pelo imenso corredor onde fica o embarque para a viagem internacional. Beleza, vai ser uma viagem internacional, com gentileza da Varig ainda por cima. Pronto, portão B é este aqui. Posto-me com a solenidade que o caso requer, como um prefeito prestes a retomar o poder. Esta é última chamada para os passageiros do vôo (qual é numero do voo?) da Varig com destino ao Rio de Janeiro Recife e Lisboa. Caramba, se é assim, por que não porque não aparecem os outros companheiros de viagem? Será que eu vou embarcar sozinho? Já dá até para desconfiar, vai sobrar gentileza. Olho prum lado e pra outro, não aparece ninguém eu ali parado num corredor que não se abre. Nunca ouvi dizer disso.
-       O senhor é passageiro do voo que vai pro Rio, pra Recife, pra...
-       Sou, sim.
-       Pelo amor de Deus, corra depressa o quanto possa, se brincar não vai poder embarcar mais.
-       Mas o que foi que houve?
-       O senhor estava esperando no lugar errado.
-       Mas foi esse o lugar que foi dado no alto-falante.
-       Foi. Mas aquele cara deve estar bêbado. Ele trocou os portões de embarque. O senhor vai num voo internacional, e o portão é outro.
Desesperado tanto quanto eu, o homem me entrega aos cuidados de uma moça que corre por cima dos sapatos altos e da saiazinha apertada para fazer aceno ao comandante da aeronave. Os homens que já haviam retirado a escada de acesso ao avião saem na carreira a apanhá-la de volta. Todos reconhecem que foi uma falta inexplicável o que acabaram de fazer com o prefeito de Cajazeiras, que amanhã, sem falta, tem que reassumir o seu posto.
Todos, menos o piloto, que não quer conversa. Do alto de sua cabine e da sua ainda mais alta importância, mostra o relógio para a moça desconsolada e lhe diz que não vai ser besta de perder o horário.
Que situação, hein? Como é que vai ficar isso, mocinha?
-       É, vamos voltar ao balcão.
Aí tratam de colocar panos mornos na ferida, certos de que podem contornar o caso.
-       Façam-me o favor, coloquem-me em contato com o gerente.
O homem se apresenta, também inchado de superioridade:
-       O senhor devia ter ido para o lugar certo esperar o embarque.
O senhor parece que não está sabendo bem do que se trata. Pergunte direitinho ao seu pessoal aí o que aconteceu.
Aparecem os outros funcionários, formam um bolo ao lado do chefe.
-       Acontece que não podemos fazer nada. A ponte aérea para o Rio...
-       Pois é, o senhor manda parar o avião no Rio e me bota no primeiro voo da ponte aérea.
-       Já está encerrada a ponte aérea.
-       Então dê um jeito. Outro voo.
-,Hoje não tem mais voo para o Rio.
E preciso eu mostrar ao homem, com toda clareza, do que se trata:
-       Você tem duas saídas e para mim tanto faz, pode ser uma ou outra. Ou para esse avião no Rio de Janeiro até que o alcance, nem que seja a pé, ou então freta um avião pra ir me deixar agorinha mesmo no Recife.
O gerente coça a cabeça, embaraçado com o inusitado da situação. Mas eu insisto que ele não pode esperar para tomar uma decisão quando queira:
-       Vamos lá, compadre. Tem que ser agora.
Quando menos espero, vejo-me embarcado num teco-teco, só eu e o piloto, diretamente para o Rio de Janeiro. Se este catavento voador resistir até lá, tudo bem. Até nem parece, ei-lo aterrizando no Santos Dumont. Antes que pare o motor, estou à frente de um carro especial com ordem de me levar em disparada para o outro aeroporto, o do Galeão. Falta só acionar as sirenes para liberar o trânsito.
-       O senhor não faz ideia do que isso veio nos causar no aeroporto - diz-me o rapaz que acompanha o motorista.
-       Posso imaginar.
No Galeão, é ainda maior o vexame estampado no rosto de todos. Quando chego, levam-me, quase me pegando pelas mãos, para imediatamente ir tomar o lugar que me negaram.
Ao entrar, a primeira pessoa que avisto é ninguém menos que Epaminondas Braga, conhecido e respeitado comerciante de Cajazeiras, tomado de espanto:
-       Não, Chico, não é possível! Quando o piloto nos comunicava a cada minuto que o voo estava interrompido porque tínhamos que esperar um prefeito desses aí, eu poderia esperar que fosse qualquer pessoa, menos você. Faz uma hora e meia que este avião está parado e a gente padecendo nesse calor do Rio. Tudo por sua causa, Chico!
Não dando para me dirigir a todos os passageiros, pedi desculpas ao meu amigo, hoje residente em Campina Grande, a quem incluo como testemunha do ocorrido, para que ninguém duvide do que é capaz um prefeito numa situação de aperto.

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26 O CASAL PIMENTA


CASAL PIMENTA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 60 a 61


No Umari não tínhamos quase nenhum meio de diversão, nenhum cinema, nenhuma festa. Mas a criatividade dos jovens compensava a falta de opções para o lazer.
Anoto com saudade o nome de dois velhinhos, donos de uma lanchonete em que infalivelmente nos reuníamos toda noite, cada um de nós tratando de trazer para o encontro a estripulia mais original. O casal Pimenta nos recebia com um sorriso, certo de contar com a nossa companhia para as suas horas de solidão. E, por piores que fossem as nossas malinagens, nós pagávamos aos velhinhos, com toda exatidão, todos os estragos que fazíamos,
Sim, porque éramos campeões em tramas e tretas para encher a paciência do casal. Quantas vezes eu misturava sal com farinha e café, ou deixava o açucareiro no ponto de soltar a tampa e derramar-se sobre a xícara de algum freguês desavisado?
Mais surpreendentes eram os ardis que armávamos contra os próprios velhinhos. Como eles enxergavam com muita dificuldade e à noite não contávamos com luz elétrica, nós amarrávamos uma linha de costura na asa de uma xícara sobre o pires e, escondendo-a por debaixo da toalha, descendo pela perna da mesa, pedíamos a um dos velhinhos que a segurasse da calçada. Os outros, de dentro, <|u.melo viam o puxavante na xícara e esta se movendo "por m mesma", pulavam de lado, simulando o espanto:
O que é isso, seu Pimenta? A sua casa está mal-assombrada.
0 curioso nessa história é que os velhinhos alternavam as suas zangas, de modo a não perderam a assiduidade de seus baderneiros. Quando um se aborrecia, logo o outro tomava a defesa daqueles jovens que, mesmo cm meio a tanta bulha sem maiores conseqüências, lhes traziam algumas horas de entretenimento e uns trocados para o sustento dos dias monótonos.

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sábado, 23 de março de 2013

25 OS CAMINHOS DA VIDA


OS CAMINHOS DA VIDA
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 58 a 60


Foi por causa do comércio que deixei o Melão. Mas o mundo que eu conhecia até então não girava além de um circuito que ia do Umari ao Baixio, ou Ipaumirim e Cajazeiras.
Com a aquisição da filial de Raimundo Dias fui levado a alargar os horizontes de meus caminhos pelo mundo. Rapidamente, com as boas vendas, restava-nos apenas um pé-de-loja, cujo estoque precisava ser renovado. Mas, ao contrário dos lojistas locais, eu não me contentei em abastecer-me à porta de casa com os caixeiros-viajantes.
- Vou fazer compras em Campina Grande - disse ao meu sócio.
0 que equivalia a dizer: "Vou para muito longe, a caminho do desconhecido". Campina Grande ficava a léguas e léguas, só alcançável em precários caminhões rompendo poeira e dando catabis por dias e noites de cansaço.
Fui compensado no esforço. Comerciante de pequenas proporções numa vilazinha mínima, eu ganhei conhecimento no meio de um centro comercial dos mais destacados do Nordeste. Já na minha primeira viagem, verifiquei o quanto tinham sido caros os preços que tínhamos pago a Raimundo Dias na compra da loja. Pior que isso e algo inimaginável nos dias de hoje - deparei-me com uma baixa assombrosa dos preços de tecidos, o que nos deixaria num beco sem saída, se não tomássemos providências urgentes.
Comprei o máximo que pude pelos baixos preços da praça de Campina Grande. Voltando ao Umari, chamei o meu sócio e lhe fiz ver a situação que nos aguardava. De comum acordo, combinamos convocar o coronel José Maria Ribeiro e Antônio Bigi para uma sociedade na compra de algodão. Sem demora teríamos que vender tecido fiado aos agricultores de melhor produção para recebermos depois os valores em algodão. Ao mesmo tempo, por uma questão de lealdade, procurei o único lojista de tecidos do vilarejo, nosso colega Domingos Ferreira - colega e não concorrente, pois muito nos considerávamos - e lhe passei as informações sobre a baixa de preços em Campina Grande. A resposta dele foi que não poderia vender a sua mercadoria abaixo do custo. Estava certo ele e estava certo o nosso plano. A onda baixista quase não atingiu a nossa praça e o resultado foi que, mesmo ganhando fama de barateiro, chegamos ao fim do ano com um faturamento igual aos dos quatro anos anteriores juntos.
Ganhamos dinheiro e ganhamos experiência na exploração de outro ramo básico de negócios em nossa terra: o algodão. Aos poucos, a SANBRA, de Sousa, na Paraíba, ia tomando conhecimento deste pequeno abastecedor que, nos pátios da firma, fazia tombar as suas primeiras arrobas do produto, e aí também ganhava nome e crédito para receber adiantamentos em dinheiro para futuras carradas. Aumentávamos o nosso capital de giro e expandíamos os negócios. No balanço de 1948, a lojinha do Umari nos dava um lucro líquido de 46 contos, quantia apreciável à época. Levando à frente nosso interesse em prosperar, incluímos na sociedade o irmão de Renato, Majestoso Gondim, dono de uma mercearia bem sortida. Trouxemos a mercearia para dentro da loja e a transformamos numa grande miscelânea.
Sem procurarmos por isso, do dia para a noite quase toda a população do Umari se fazia freguesa de nossa casa.



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quinta-feira, 7 de março de 2013

24 ROLIM & GONDIM

ROLIM & GONDIM
Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 56 a 58

Olha aí a Guerra!
A Guerra é um bicho que bota pólvora pelas fuças, de ronco e estrondo horroroso, a besta-fera em pessoa, engolindo gente sem mastigar.
A meninada tremia quando falavam de guerra. As mulheres desfiavam rezas. Que São Sebastião nos livre da peste, da fome e da guerra.
Mas - sorte nossa! - a Guerra acontecia no outro lado do mundo. Para nós, quando muito, ela vinha associada a uma onda de gripe ou uma epidemia de febre inexplicável:
Isso é a fumaça da Guerra.
Vivendo naqueles cafundós, quase nulo é o meu depoimento sobre o fim da segunda conflagração mundial, bem como sobre a deposição de Getúlio Vargas. Lembro da disputa eleitoral entre o General Eurico Gaspar Dutra e o Brigadeiro Eduardo Gomes, também figuras distantes para nós, que eram traduzidas pela força e influência de coronéis que, afinal, apenas se utilizavam dos títulos eleitorais dos pobres habitantes da região para jogarem nas umas, algumas já previamente viciadas, as cédulas impressas com os nomes que sua vontade impusesse.
Foi então que votei pela primeira vez: em Eduardo Gomes... Quer dizer, no coronel José Maria Ribeiro, opositor do coronel José Leite Ribeiro, partidário do candidato oficial.
De Dutra, já presidente, cedo se fixou entre nós a efígie gravada na moeda de 50 centavos, ou 500 réis, como ainda continuávamos dizendo. A cara dura, a cabeça sem pescoço do general nem de longe sugeriam que, anos depois, eu iria, como administrador da coisa pública, deparar-me com outros militares de cenho ainda mais carregado e cabeça inflexível.
Daqueles anos, o que me afetou de perto foi a chamada "Queda Pecuária", no começo do Governo Dutra.
Até 1947, o rebanho de nossa região merecia as melhores atenções governamentais, com linhas de crédito oficial para o seu fomento. Ser dono de gado era ter a certeza da conversão em dinheiro, a qualquer momento, de um patrimônio já prestigioso. Quando esse negócio estava no auge, Raimundo Dias me procurou para oferecer-me a loja em venda. Eu lhe respondi que a proposta era um grande estímulo para um rapaz que, na verdade, pretendia ensaiar no futuro os seus próprios passos na vida do comércio. Apenas me faltava ainda o capital para corresponder-lhe à oferta.
- Gado, Chico.
Eu tinha no Melão, no curral da família, e numa rocinha do Umari, um gadinho pouco, trinta reses magras, número insuficiente para trocar por uma loja de tecidos.
- Arranje um sócio com algum dinheiro, Chico.
Veio-me à lembrança procurar o meu amigo
Renato Gondim, grande proprietário local. Ele se mostrou interessado pelo negócio, mas não dispunha de dinheiro à mão para aceitar a sociedade.
Mas fique tranquilo, nós vamos falar com Lucas Daniel e eu lhe tomarei dinheiro emprestado. Depois eu pago a ele em algodão.
Lucas Daniel, uma das pessoas de maior lastro financeiro, prontificou-se a arranjar o capital que precisávamos. Vendi, então, por quinze mil cruzeiros, ou quinze contos, todas as cabeças de gado que tinha e tratamos de formar a sociedade Francisco Rolim & Gondim.
Nesse ponto, deu-se o fechamento de todo o crédito pecuário pelo Governo Federal. A "Queda Pecuária" veio desfazer de supetão o melhor de nossos planos. Lucas Daniel nos informou ser impossível cumprir o que prometera, pois o que tinha de disponível encontrava-se em mãos do industrial Francisco Antunes, em Antenor Navarro, o qual, por sua vez, alegava não poder pagar-lhe uma grande partida de algodão, pela retração do crédito bancário.
Vi-me obrigado a bater à porta de pessoas amigas para socorrer o meu sócio Renato Gondim. 0 meu cunhado Antônio Bigi me emprestou dez contos e outro tanto tomamos por empréstimo ao coronel José Maria Ribeiro.
Com isso, fizemos o pagamento da loja ao velho Raimundo Dias e iniciamos as nossas atividades.
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sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

23 O INSPETOR CATURRA, A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte

 O INSPETOR CATURRA

Do livro Do Miolo do Sertão
A História de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte
pags. 54 a 55
     Hoje o Umari é uma cidade. Naqueles tempos era apenas uma vila. A pequena loja de Rai- mundo Dias era de ta- manho suficiente para ne- la eu fazer um bom cur- so sem mestre na arte de vender e nas técnicas de gerência. Nos quase cinco anos em que permaneci à frente daquele comércio, tive que responder não somente pelas vendas, mas também pelos serviços de contabilidade, incluindo o recolhimento de impostos, o de Vendas e Consignações, pago à base de um percentual sobre o faturamento da casa. Todo esse trabalho era feito à mão e o fechamento da escrita, obviamente, era uma espécie de "conta de chegar", pois a firma não tinha escrita ordenada.
Sozinho, com tamanha responsabilidade sobre os ombros, eu insistia junto a meu patrão que me visitasse com frequência e verificasse como andavam os seus interesses no Umari. Raimundo Dias se dava por satisfeito com apenas a visita anual para o balanço. Graças a Deus, a filial prosperava e aos poucos eu via caírem os "segredos" ou as peculiaridades da vida de comércio. Ganhando traquejo, crescia-me a autoconfiança e o desejo de progredir.
   0 meu teste de resistência deu-se no final do ano de 1944, quando tive de enfrentar uma fera chamada Verimundo, o no- vo coletor de impostos do Bai- xio. Quinzenalmente, eu tinha que ir a cavalo à sede do município, para quitar-me com as obrigações fiscais, e desde logo conheci a fama daquele inspetor do Erário, notório como o "terror da região", por isso rebatizado como Viramundo. A perseguição que se levantou contra os pobres bodegueiros sem inscrição comercial, principalmente os da zona rural, faziam-me estremecer quando, fechando os olhos, eu me imaginava enfrentando o monstro, tendo talvez de alimentá-lo com dinheiro que não era meu.
Vou fazer o que sempre fiz - decidi afinal. - Se estiver errado, pagarei caro mas terei um professor que me ensine uma vez por todas o que tenho de aprender.
Chegado o prazo para a entrega do balanço, fiz o fechamento da escrita, juntei os livros e segui para ser sacrificado.
Aqui estão os documentos da filial de Raimundo Dias no Umari.
0 homem, sentado como estava, mal levantou a vista, olhando-me por entre o rigor das sobrancelhas:
Deixe aí e passe depois.
Passei depois, ainda mais apreensivo. 0 inspetor caturra olhou toda a documentação, folheou uma vez, duas, virou as páginas dos livros, teimando em catar picuinhas. Silêncio. Afinal, olhou para mim que, em pé à sua frente, esperava a sentença de morte:
Quem foi que preparou esses documentos?
Eu mesmo.
Rapaz, em um ano, desde que estou nessa coletoria, este é o primeiro balanço que recebo sem ter nada a corrigir. As suas contas estão aprovadas.
Era aquele o meu exame de admissão à vida de comerciante.
 

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